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Diário de um Escritor

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Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Agora eu sou a Morte, a destruidora de mundos

Hoje transformado em um memorial, o apartamento do físico Sakharov, opositor do governo russo, era alvo de constantes batidas do KGB

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h25 - Publicado em 21 jun 2018, 08h14
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  • Por causa de sua oposição encarniçada à invasão do Afeganistão pelas tropas da URSS, a partir de 1979, o físico nuclear soviético (e dissidente político) Andrei Sakharov (1921-1989) foi submetido, entre 1980 e 86, a um exílio interno na então cidade fechada de Górki (hoje Níjni Novgorod), à qual cidadãos soviéticos sem permissão e estrangeiros não podiam ter acesso – realizavam-se, em Górki, pesquisas nucleares que contribuíam, sobremaneira, para o desenvolvimento do programa atômico soviético.

    Memorial de Andrei Sakharov em Níjni Novgorod
    Memorial de Andrei Sakharov em Níjni Novgorod (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

    Crítico contumaz ao estalinismo e à falta de liberdades civis na URSS, Sakharov chegou a afirmar que, a despeito do caráter libertador do Exército Vermelho em sua luta contra os nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial, a campanha contra os afegãos era intrinsecamente imperialista, pecha que a propaganda soviética tendia a atribuir, unilateralmente, ao intervencionismo dos Estados Unidos, a despeito das invasões à Hungria, em 1956, e à então Tchecoslováquia, em 1968, pelos tanques da URSS.

    Hoje transformado em um memorial, o apartamento de Sakharov, situado na Avenida Gagárin, 214, era alvo de constantes batidas do KGB. Apenas a glasnost (democratização, transparência política e liberdade de informação) implementada pelo premiê Mikhail Gorbatchov (1931 –  ) veio a permitir que o exílio de Sakharov chegasse ao fim, o que possibilitou ao físico retornar a Moscou.

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    Sakharov foi um cientista fundamental tanto para o desenvolvimento da primeira bomba atômica soviética quanto para a implementação da bomba de hidrogênio, com capacidade de destruição (in)sensivelmente maior. Após entrar em contato, in loco, com o potencial radicalmente niilista dos armamentos nucleares, Sakharov rompeu com a sua atuação prévia como cientista e passou a militar, entusiástica e desesperadamente, contra a corrida armamentista tresloucada pela Guerra Fria. Em 1975, recebeu o Prêmio Nobel da Paz.

    Há algo de profundamente quixotesco em Andrei Sakharov, com o melhor sentido do adjetivo derivado da personagem de Cervantes.

    É como se, sumamente instigado pela curiosidade científica (que se alimenta continuamente de si mesma), Sakharov entrasse no quarto escuro da radioatividade para descobrir, qual um Cristóvão Colombo, as muitas Américas da física nuclear. É como se, para o cavaleiro cientista, os moinhos de vento fossem as fronteiras a serem superadas por mais (e mais) conhecimento.

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    Mas, uma vez cruzados determinados limites, qual a garantia de que se possa – ou pior, de que se queira – voltar atrás?

    Uma vez liberto de sua lâmpada, qual a garantia de que o gênio possa – ou pior, de que ele queira – voltar ao cativeiro?

    É como se, sumamente desesperado diante do niilismo científico (que se alimenta continuamente de si mesmo), Sakharov quisesse fechar a porta do quarto escuro da radioatividade para evitar, qual um Dom Quixote, a extinção das Américas. É como se, para o cavaleiro militante, os moinhos de vento fossem as fronteiras a serem respeitadas diante da radical tangibilidade do nada.

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    Imaginemos a mescla – a bem dizer, a fusão nuclear – radicalmente paradoxal no coração de Sakharov, quando o cientista constata, em face do cogumelo atômico virtual e concretamente indômito, que o ápice do desenvolvimento científico da humanidade coincide com o potencial elogio de seu próprio naufrágio.

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    Teste nuclear com a Tsar Bomba, a imperatriz de todas as bombas, realizado pelos soviéticos na ilha Novaia Zemlya, no Oceano Ártico, em 30 de outubro de 1961 (Tsar Bomba/Divulgação)

    Sakharov certamente subscreveria todas e cada uma das palavras do físico estadunidense Julius Robert Oppenheimer (1904-1967), diretor do programa nuclear dos EUA (o Projeto Manhattan) para o desenvolvimento da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo Oppenheimer, “nós [os cientistas] sabíamos que o mundo jamais seria o mesmo. Algumas pessoas riam, outras choravam. Mas a maioria permaneceu em silêncio. Me recordei de uma passagem das escrituras hindus, o Bagavad-Gita: tentando convencer o príncipe a concluir suas tarefas, Vishnu assumiu sua forma com vários braços e disse: ‘Agora eu sou a Morte, a destruidora de mundos’. Os físicos conheceram o pecado”.

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    Em 12 de setembro de 1994, o escritor argentino (e ex-físico nuclear) Ernesto Sabato (1911-2011) concedeu uma entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Após concluir seu doutorado, em Paris, Sabato chegou a trabalhar no Laboratório Curie [em deferência à cientista polonesa Marie Skłodowska Curie (1867-1934)], no qual participou de estudos sobre a fissão do átomo de urânio que levariam à construção da bomba atômica poucos anos mais tarde.

    Eis o que Ernesto Sabato disparou acerca do niilismo científico: “O apocalipse nuclear pode acontecer a qualquer momento, porque, entre outras coisas, os homens de ciência são amorais e qualquer um deles ficaria encantado em produzir o apocalipse nuclear, não é? A ciência é amoral; não é imoral, é amoral, ela está fora das convenções. O teorema de Pitágoras não é feio nem desagradável, ele é correto – e ponto final. O apocalipse nuclear já está acontecendo e está intimamente vinculado ao desenvolvimento da ciência, que é enorme, desenvolvimento que produziu isso que os enciclopedistas chamaram de ‘progresso’. Belo progresso, que, segundo os cálculos dos especialistas, pode dar ao planeta, em termos físicos (e mesmo sem a bomba atômica), mais uns quarenta ou cinquenta anos de vida”.

    No documentário Sob a névoa da guerra (2003), direção de Errol Morris, Paul Warfield Tibbets Jr. (1915-2007), brigadeiro-general da Força Aérea dos Estados Unidos e comandante do avião que lançou a bomba atômica sobre Hiroshima no dia 6 de agosto de 1945, revela que havia muita curiosidade entre os militares, cientistas e políticos a respeito das consequências da explosão do Little Boy. Testes haviam sido realizados em locais ermos e desérticos dos EUA, mas todos estavam muito instigados para ver quais seriam os efeitos da liberação do cogumelo atômico em uma cidade real – ou melhor, em um laboratório a céu aberto.

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    Quando perguntam a Tibbets se ele sente algum tipo de culpa pelo aumento de temperatura da ordem de 5.500.000 (cinco milhões e quinhentos mil) graus centígrados e pela pulverização instântanea de 200.000 (duzentas mil) pessoas em Hiroshima – isso sem contabilizarmos as vítimas por causa da contaminação nuclear por anos e anos a fio –, o brigadeiro-general é categórico:

    – Hiroshima e, posteriormente, Nagasaki salvaram a população japonesa da extinção. Quantos milhões de mortos ainda não haveria se o Little Boy e o Fat Man não coagissem o imperador Hirohito à capitulação incondicional?

    Vale frisar, ademais, que o filho dileto Paul Warfield Tibbets Jr. batizou o avião que ejaculou o menininho Caim sobre Hiroshima com o nome de sua mãe, Enola Gay.

     

    Sobre o autor

    Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

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