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‘Sim, vivemos um eterno retorno a Freud’

Em trilogia que ganha seu primeiro volume, professor prescreve beber do pai da psicanálise direto da fonte e defende sua relevância atual

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 jun 2024, 19h13 - Publicado em 9 jun 2024, 09h00
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  • Poucos autores foram tantas vezes declarados mortos e renasceram feito fênix como Sigmund Freud (1856-1939). Goste-se ou não do que o fundador da psicanálise propõe, tudo leva a crer que ele ainda tem muito a dizer. E é por isso que um dos maiores estudiosos de sua obra no Brasil, o psicanalista e filósofo Gilson Iannini, sugere um retorno às origens… aos textos e às ideias do médico vienense.

    Mas o projeto do professor de psicologia da UFMG não se baseia numa reconstrução histórica e datada do pensamento freudiano. Pelo contrário, o mantra é atualizar a discussão, bebendo diretamente da fonte, algo para o qual o neurologista austríaco se presta com naturalidade. “Vivemos um eterno retorno. Mas cada vez é um Freud diferente”, afirma Iannini.

    Esse trabalho de garimpagem e reflexão à luz dos desafios da contemporaneidade será materializado com a trilogia Freud no Século XXI (Editora Autêntica), cujo primeiro volume chegou às livrarias. Mas não espere um guia didático da disciplina inaugurada pelo cara do divã em O Que É Psicanálise?

    Esse é um livro que, mesclando relato pessoal, imersões conceituais e explorações do noticiário, busca provocar e instigar a saída da zona de conforto, seja para os seguidores, seja para os detratores da escola freudiana.

    O que é psicanálise?

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    Para Iannini, não deveríamos ficar reféns das reinterpretações canônicas do autor, ainda que possamos valorizar parte de seu corolário – algo que se aplica particularmente ao complexo Jacques Lacan. Podemos conectar as ideias sobre o inconsciente lapidadas por Freud aos tempos e às ciências atuais, debatendo, criticando e ressignificando seu legado.

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    Esse projeto de rever o pai da psicanálise – com as reservas que a figura do pai sempre projeta, já diria Freud – se desdobra dentro e fora da clínica, contribuindo para uma discussão em sociedade e o cuidado com a saúde mental numa era marcada pela ansiedade das redes sociais e a faca de dois gumes da tecnologia.

    Com a palavra, Gilson Iannini.

    Vivemos um eterno retorno a Freud? 

    Gostei da expressão “eterno retorno a Freud”. Certamente! Freud é, sem dúvida, o autor que foi declarado morto mais vezes. Quantas vezes alguém já declarou que a psicanálise é coisa do passado, que Freud é uma fraude ou coisas assim? E, no entanto, se lê Freud. Para você ter uma ideia, uma nova tradução inglesa das “Obras completas de Freud” acaba de ser publicada, e com quatro volumes a mais. E essa nova edição procura restabelecer a conversa da psicanálise com as neurociências. No Brasil, editoras importantes disputam o legado freudiano e os livros estão sempre sendo reeditados.

    Então, sim: vivemos um eterno retorno. Mas cada vez é um Freud diferente. Freud é um autor multifacetado, que escreveu sobre diversas facetas do sofrimento humano, sob ângulos e perspectivas as mais diversas. Sua obra é um manancial infindável de respostas, se soubermos fazer as perguntas certas, se soubermos desativar as lentes que nos cegam.

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    Freud é um autor que soube dar voz a quem não tinha voz, nem lugar de fala: deu voz às histéricas, silenciadas pelo discurso médico; deu voz aos homens que voltavam silenciados dos campos de batalha e cujo sofrimento era tratado como mero fingimento; deu voz e sentido à loucura e ao sonho, que puderam finalmente ser escutados como experiências demasiado humanas. Freud não se deixou cegar pelas luzes de seu tempo, e conseguiu enxergar, através das sombras, aquilo que, em cada um de nós, não se cala jamais.

    + LEIA TAMBÉM: Como o celular está mexendo com a saúde mental de uma geração

    Em seu último livro, o senhor propõe beber direto da fonte freudiana, de seus textos e ideias. Por quê?

    Freud é um autor lido e relido dos mais diversos jeitos. A última grande empreitada de leitura sistemática e renovadora da obra de Freud foi empreendida pelo psicanalista Jacques Lacan, nas décadas de 1950 e 60. Usando ferramentas disponíveis no tempo dele, como a linguística estrutural, a etnologia e a dialética, Lacan conseguiu recuperar o gume da experiência freudiana, que tinha sido lida pela psicanálise americana de uma forma muito empobrecida. Mas, de lá pra cá, meio século se passou.

    Hoje, dispomos de novas técnicas de leitura, mas também de novos problemas, que nos permitem encontrar em Freud verdadeiras pedras brutas, precisando ser lapidadas. Foram feitos muitos avanços na linguística, na antropologia, nas ciências e assim por diante. E muitas dessas novas descobertas são convergentes com camadas do texto de Freud que estavam meio à sombra – e que podem vir à tona hoje. Nossas sociedades mudaram bastante, nossas formas de sofrer mudaram, nossa forma de experimentar o prazer e o corpo mudaram, mas isso não nos transformou em pessoas mais felizes, menos sofredoras, pelo contrário.

    Qual seria a mensagem mais relevante que a obra de Freud tem a dizer sobre esse não tão admirável mundo novo?

    Não sei dizer se Freud é um mensageiro. Ele era bastante cético, mas não pessimista, quanto ao mundo. A cada passo que a humanidade dá para a frente, ela tropeça, cambaleia, volta uma casa… Depois volta a avançar. A história não segue uma linha reta. Mas, se eu precisasse escolher alguma coisa, diria que a verdade de cada um de nós não pode ser decodificada por algoritmos, por modelos, por identidades, por categorias diagnósticas. Nossa singularidade é onde a dor e a delícia de viver se entrelaçam. A palavra que fere também cura.

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