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“Bolsonaro sacrifica a causa para salvar a própria pele”, diz professor

Autor que acaba de lançar livro em que analisa o bolsonarismo enquanto fenômeno social e psíquico comenta o fôlego e o futuro do movimento

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 ago 2023, 15h56 - Publicado em 16 ago 2023, 07h21

João Cezar de Castro Rocha é daqueles raros intelectuais versáteis que, acompanhando o tragicômico noticiário nacional, evoca, com propriedade, Shakespeare, Cervantes e Machado de Assis. Professor de literatura comparada da UERJ, enveredou, nos últimos tempos, em uma análise profunda do bolsonarismo, recorrendo, para tanto, a conceitos, explicações e alusões da psicologia, da sociologia e dos próprios clássicos literários.

Castro Rocha entende o bolsonarismo enquanto fenômeno complexo que não se resume a mera lavagem cerebral. E reforça que, em vez de tratarmos a coisa como caricatura, precisamos, na verdade, caracterizá-la e compreendê-la a fim de resguardar a própria democracia e uma cultura baseada em ética e respeito ao outro.

Dessa forma, como sintetiza em seu novo livro Bolsonarismo: Da Guerra Cultural ao Terrorismo Doméstico (Autêntica), a ascensão de uma direita radical no país, que ergue em seu pedestal o ex-presidente (na falta de outro ícone), tem como pano de fundo o que ele chama de dissonância cognitiva coletiva e uma estrutura que, amparada nas redes sociais e na mídia alternativa, insufla uma constante contestação da realidade e do jogo democrático, com direito a fake news e lucros em cima ou debaixo da mesa.

A obra reúne e atualiza artigos que Castro Rocha publicou na imprensa, junto a algumas entrevistas, e faz parte de uma trilogia a ser lançada pela editora Autêntica. Apropriando-se e reformulando ideias de diversas áreas das ciências humanas – de Freud a René Girard -, sua análise ganha corpo como peça inescapável para compreender melhor o principal fenômeno político nacional dos últimos anos.

Admirador de Otelo (Shakespeare), Dom Quixote (Cervantes) e Dom Casmurro (Machado de Assis), o professor destaca como um pensador central para os tempos que atravessamos o francês René Girard. “Sua hipótese do desejo mimético e, sobretudo, da violência nele contida, ilumina de forma impressionante a atmosfera bélica das redes sociais. No segundo volume da trilogia, Retórica do Ódio: A Pedagogia de Desumanização do Outro, a teoria mimética ocupará um lugar central”, adianta.

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Bolsonarismo: Da guerra cultural ao terrorismo doméstico

bolsonarismo

Com a palavra, o autor.

À luz do conceito de dissonância cognitiva coletiva que o senhor propõe, em que medida o bolsonarismo continuará tendo fôlego diante da inelegibilidade de Bolsonaro e de ações na esfera jurídica mirando ele próprio, seus parceiros e seguidores mais radicais?

É muito importante entender o que significa dissonância cognitiva coletiva; e aqui o traço coletivo é o elemento mais importante – e assustador. Mais do que uma realidade paralela ao mundo “real”, se a dissonância cognitiva torna-se coletiva e empolga (ou aprisiona em sua lógica distorcida), digamos, 58 milhões de pessoas, então, os efeitos produzidos por construções mentalmente delirantes se convertem em fato político concreto, objetivo. E podem até determinar o resultado de eleições presidenciais.

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Nesse sentido, a inelegibilidade somente reforça o núcleo duro do bolsonarismo, pois alimenta sua narrativa-matriz: Bolsonaro é perseguido por ser contra o sistema; tornado inelegível, o sistema pretende dele defender-se. Eis a lógica da midiosfera extremista, esse poderoso ecossistema de desinformação manejado com maestria pela extrema direita em todo o mundo, sem a qual a dissonância cognitiva coletiva desapareceria.

Como enfrentar esse fenômeno? Choques constantes de realidade: tentou dar golpe militar? É crime grave: será julgado e, se for o caso, punido. Ameaçou alguém nas redes sociais? Crime digital, por ser digital, não é menos criminoso e, sobretudo, deve ser punido com a celeridade do próprio meio: nada de justiça exclusivamente analógica para crimes digitais.

Recordo o episódio que permitiu ao Dom Quixote recobrar a sanidade: colocado diante de escudos que, de tão polidos, se assemelhavam a espelhos, ele finalmente pôde ver-se a si mesmo, pôde avaliar o triste estado mental em que se encontrava. Cervantes é hoje mais atual do que na época da publicação do Dom Quixote!

No livro, o senhor destaca o papel das redes sociais para dar vazão e acolhimento às ideias do bolsonarismo. Acredita que a regulamentação e a responsabilização delas seriam o melhor caminho para mitigar o fenômeno da retórica do ódio e a disseminação das fake news atreladas a ele?

A extrema direita conseguiu uma vitória decisiva e nada importa mais do que questioná-la. Eis: difundiu-se, em todo o mundo, a ideia de uma hipotética liberdade absoluta de expressão, cujo corolário é a recusa de qualquer forma de regulação das redes sociais. Ao mesmo tempo, não se admite forma alguma de controle da atividade política exercida nas plataformas. Essa dupla falácia precisa ser desmontada ou a própria democracia se torna inviável. O limite da liberdade de expressão deveria ser óbvio para quem não estiver dominado por paixão ideológica: o cometimento de crimes; aliás, previstos no código penal.

Em primeiro lugar, as redes sociais já são reguladas, e muito, pelos algoritmos das plataformas. Simplesmente, esse controle não é transparente e obedece sobretudo a seu interesse financeiro. Em segundo lugar, a manipulação política quase sempre infringe regras vigentes dos códigos eleitorais dos mais diversos países.

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O escritor João Cezar de Castro Rocha // (Foto: Autêntica/Divulgação)

Aqui, contudo, o problema maior se anuncia: difundem-se notícias deliberadamente falsas para ganho político imediato. Uma vez denunciada a prática, a justiça, por ser analógica, é muito lenta. Nesse entretempo, o candidato que se beneficiou da desinformação pode ser eleito e, aí, o processo tende a ser esquecido.

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Por fim, tão importante quanto a regulação é a desmonetização das redes de ódio. A retórica do ódio é sobretudo um modelo de negócio, próspero, demasiadamente próspero, pois, em virtude da preponderância da economia da atenção nas redes sociais, quanto mais violento, mesmo odioso, for um discurso, tanto maior o número de visualizações e consequentemente o potencial de monetização. Esse circuito perverso precisa ser interrompido.

Diante das últimas notícias, avalia que a direita mais radical pode se retroalimentar de Bolsonaro ao tratá-lo como uma espécie de bode expiatório das falhas e fraquezas desse campo político?

Pois é! Mas, nesse caso, todo cuidado é pouco: na teoria mimética, tal como desenvolvida por René Girard, o bode expiatório só se torna sagrado após ser sacrificado. Porém, no instante em que é expiado num ritual coletivo, ele é visto como a encarnação de todo o mal que se abateu sobre a sociedade.

No fundo, Bolsonaro não tem estofo trágico o bastante para virar bode expiatório. Na “franquia-bolsonaro” tudo é ordinário: da rachadinha à cotação de Rolex; de imóveis comprados com dinheiro vivo a diamantes contrabandeados; de 17 milhões em Pix que são investidos sem pagar multa alguma a cartão de vacina adulterado; de bravata para a manada a lágrimas ruidosas após a derrota eleitoral.

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Tal personagem é um político de chanchada, mas sem graça nenhuma; ele não possui envergadura para um ritual trágico. Nem mesmo pode almejar o figurino do líder messiânico. Tal líder está sempre pronto a se sacrificar para salvar a causa; pelo contrário, Bolsonaro sacrifica sempre a causa e seus cúmplices para salvar a própria pele.

Mas anote-se o paradoxo: a sobrevivência do bolsonarismo, enquanto movimento político de massas, depende da redução máxima de Bolsonaro ao mero papel de cabo eleitoral. Antes, porém, o mais provável é que seja julgado por seus inúmeros crimes e veja o sol nascer quadrado.

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