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As assombrações japonesas na pena de um homem que viajou o mundo

Em coletânea de contos recém-traduzida, autor cosmopolita desfia histórias fantásticas e fantasmagóricas nascidas do folclore do Japão

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 Maio 2024, 08h26 - Publicado em 23 out 2023, 07h48

Os apreciadores de filmes de terror afirmam que O Chamado (1998) é um marco e influência inescapável no cinema do gênero – a película original japonesa arrepiou o mundo e abriu caminho a adaptações e franquias que até hoje atraem e assustam espectadores orientais e ocidentais. Suas cenas, povoadas de assombrações com contornos femininos, bebem de lendas, personagens e inspirações do folclore nipônico.

Pois quem quiser tomar água diretamente dessa fonte vai matar a sede em Kwaidan – Histórias de Fantasmas e Outros Contos Estranhos do Japão Antigo, de Lafcadio Hearn, recém-vertido ao português por Sofia Nestrovski e publicado pela Editora Fósforo. Como o título entrega, somos convidados a encarar causos criados pelo imaginário japonês, na pena de um autor que rodou o mundo desde o berço e se converteu em um divulgador da cultura do país que veio abraçar tempos depois.

(Hearn é um sujeito sui generis que merece um interessantíssimo prefácio assinado pela tradutora de Kwaidan. Breve spoiler: nasceu numa ilha grega, viveu na Irlanda, nos Estados Unidos e na Martinica até mudar-se para o Japão e se casar com a filha de um samurai. Em suas próprias palavras, “um devoto da estranheza”.)

Graças a ele, temos um panteão de relatos assombrosos em que espíritos seduzem e atormentam homens, vivos convivem com mortos, mulheres viram árvores ou bichos, seres e rostos aparecem e somem, insetos trazem mensagens ocultas… Se filmes de terror made in Japan assustam tanto é porque contam com esse rico background presente em Kwaidan – termo japonês que significa algo como narrativas misteriosas ou fantasmagóricas.

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O escritor Lafcadio Hearn
O escritor Lafcadio Hearn (Foto: Domínio público/Reprodução)

A obra reúne amostras do “exótico” e do “monstruoso” que tanto fascinaram Hearn – e, em alguma medida, fascinam as pessoas ainda hoje. Fascínio com um pé no medo, diante daquilo que nos faz querer ler e ver, mas quase fechando os olhos na hora em que a assombração dá as caras. Um horror psicológico sutil e, talvez por causa disso, apavorante.

(Arrepiei particularmente com o conto Mujina.)

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Não se trata da primeira tradução do livro no Brasil. A Editora Claridade chegou a publicar uma edição com um décimo oitavo conto, extraído de outra coletânea, A Promessa (também traduzido como A Promessa Quebrada), uma história assustadora frequentemente incluída em antologias de textos fantásticos ou de terror.

“Ultimamente vêm saindo novas edições da obra de Hearn em muitas línguas, inclusive em inglês. Parece que ele está tendo um revival. Que bom que um autor que dedicou tanto tempo a falar dos que não morrem tenha também seu momento de reviver”, diz Sofia, a tradutora e prefaciadora do novíssimo livro que chega aos leitores brasileiros.

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Com a palavra, Sofia Nestrovski.

Como descobriu Kwaidan e o autor? O que mais te fisgou no livro?

Descobri Lafcadio Hearn ao acaso, alguns anos atrás, num ensaio sobre autores que se dedicaram a fazer literatura com insetos. Hearn estava ali, ao lado do belga Maurice Maeterlinck e do francês Jean Henri Fabre. Mas fiquei fixada nele, porque, ao lado do nome escrito em alfabeto romano, havia um parênteses com seu nome em grego (Πατρίκιος Λευκάδιος Χέρν), um com seu nome em japonês (小泉 八雲), acompanhado de um apelido absolutamente irlandês, “Paddy”. Quantas outras pessoas no mundo já tiveram precisamente essa tripla nacionalidade? E se dedicaram a escrever sobre insetos?!

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Como se não bastasse – fui pesquisar –, Hearn ficou órfão cedo e cego de um olho e viveu desassistido como um personagem de Dickens na Londres do final do século 19; foi tradutor de Flaubert para o inglês; teve um restaurante de comida creole em Nova Orleans que se propunha a ser o restaurante mais barato do sul dos Estados Unidos (e durou um mês); publicou o primeiro livro de receitas de culinária típica da Louisiana; acompanhou de perto o nascimento do jazz e do blues; escreveu um dicionário de provérbios de seis variantes do francês creole; viveu numa ilha na Martinica; casou com a filha de um samurai; publicou um livro por ano durante os 14 anos que viveu no Japão, até sua morte.

Ele não tratou nada com indiferença, nem mesmo os fantasmas e os insetos. O que mais me fisgou no livro foi seu autor, em primeiro lugar. Por isso, fiz questão de escrever um prefácio sobre sua vida. E, depois, os 17 contos de assombro e três ensaios sobre insetos, escritos num tom que mistura o folclórico e o impessoal com inserções idiossincráticas, colchetes, notas de rodapé e comentários que quebram o registro e acrescentam mais estranheza ao que já era estranho, e lhe dão calor humano.

sofia nestrosvski
(Foto: Miguel Nassif/Divulgação)

O folclore japonês reúne histórias de assombração que, na literatura, nos quadrinhos ou no cinema, até hoje atraem e arrepiam os leitores e espectadores, inclusive os ocidentais. Que elementos estariam por trás desse efeito? Em que medida Kwaidan traz essas características?

Dá pra se aproximar de Kwaidan por duas entradas: sua origem japonesa e sua origem europeia. No Japão, o livro se tornou um registro de uma cultura que estava em vias de desaparecer ou se transformar com a modernização e ocidentalização do país no início do século 20. Nesse sentido, Hearn atuou como um folclorista e preservador importante, um Câmara Cascudo, só que de um país que não era o dele. O livro virou referência para o próprio Japão: em 1964, dois contos da coletânea (somados a outros dois, de outros livros de Hearn) foram adaptados para o cinema, no filme Kwaidan: as quatro faces do medo, de Masaki Kobayashi, um dos clássicos do terror japonês. Algumas das histórias também estão espalhadas nas animações do Studio Ghibli, como em PomPoko: a grande batalha dos guaxinins.

Mas Hearn nadava de braçada com as influências do século 19 europeu: Edgar Allan Poe – que até hoje atrai e arrepia leitores e espectadores – tinha sido seu autor preferido da juventude, assim como Guy de Maupassant e o Flaubert místico de Salambô. Hearn também trabalhou primeiro como jornalista nos Estados Unidos, publicando relatos grotescos de crimes violentos.

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Kwaidan é uma depuração disso, muito mais limpo, muito mais delicado, uma busca de uma sublimação do horror real. Mas Hearn não esconde suas influências. E um dos últimos contos, Hi-mawari, deixa clara a memória do folclore irlandês.

Que conto do livro melhor representa o poder do terror psicológico japonês?

Todos, inclusive os estudos de insetos. Talvez principalmente os estudos de insetos.

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