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Por Diogo Sponchiato
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A matemática da vida: quando a escrita junta gente, células e números

Estreando na prosa literária, a bióloga Marcella Faria abole as fronteiras do saber para retratar buscas e angústias humanas, demasiado humanas

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 26 dez 2023, 11h02 - Publicado em 22 dez 2023, 15h11

Contar: um verbo que se aplica tanto a histórias montadas por palavras como a equações formadas por números. Um verbo regido, em seus múltiplos sentidos, na rotina de pesquisas e nos textos da bióloga e escritora Marcella Faria.

Em Números Naturais, sua primeira produção em prosa que acaba de ser publicada pela Editora 34, a cientista-poeta mistura ideias, causos e fórmulas matemáticas para conjugar verbos e vidas conto a conto. Os símbolos que organizam o mundo e aprendemos desde pequenos ditam a passagem das páginas e as aventuras e desventuras dos personagens.

Das angústias do parto às delícias do sexo. Do dever de casa às brigas no lar, não tão doce lar. Da célula toda-poderosa à natureza em erosão. As tramas e tensões ora se dividem, ora se multiplicam, e, mais do que os números e as palavras em si, o que sobressai, nessa confluência entre matemática e literatura, é a matéria-prima de que somos feitos.

Números naturais

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Assim se fecha o círculo, que também conecta as duas partes da obra – círculo, esse objeto tão adorado por geômetras e místicos. E já não se vislumbram mais divisões e compartimentos nas coisas da vida retratadas pela autora-bióloga (bióloga-autora).

Com a palavra, Marcella Faria.

Evocando o ovo abordado em contos do livro, o que veio primeiro na sua vida: a ciência ou a literatura?

Penso que o que me chegou primeiro foi a contagem, esse procedimento capaz de a um só tempo revelar e imprimir padrões, métricas, cronologias, trânsitos, encadeamentos, correspondências, acasos, causas e “causos” entre as coisas. Contar como tentativa de dar algum sentido à nossa experiência de mundo sempre me pareceu o melhor dos passatempos.

Ainda pequena, eu pedia que me contassem “histórias de verdade”, mas de dois tipos bastante específicos: ou as que não tivessem acontecido ainda, ou as que se repetissem sempre iguais. Em retrospecto, vejo que já me interessava pelas histórias contadas pela biologia, pela literatura e pela matemática; jeitos de formalizar o correr da vida e a construção do tempo.

Em termos mais concretos – sou bióloga celular por vocação, formação e atuação profissional, além de levar a célula no nome “marCELLa” -, poderia alegar uma precedência da célula em relação à palavra na minha vida, mas não seria justo. Pois um nome também, e antes de tudo, é uma palavra. As células, as palavras, os números são narrativas potenciais: como o ovo que vive morrendo (ovo) para existir (galinha) e, assim, seguir criando novas versões de si (de n(ovo)).

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A bióloga e escritora Marcella Faria
A bióloga e escritora Marcella Faria (Foto: Paulo D'Alessandro/Reprodução)

Há uma velha tendência, hoje bastante contestada, de dividirmos o saber em bloquinhos, frequentemente murados. Pode nos contar como enxerga essas repartições e de que forma a ciência se entrelaça na sua criação literária?

Penso que essa compartimentalização vem da forma como o método científico foi apropriado e vem sendo praticado pela sociedade contemporânea, em suas múltiplas instâncias de poder, o que resulta de um grande mal-entendido sobre o significado das palavras “objetividade” e “subjetividade”. Na tradição escolástica da Idade Média, “objetividade” queria dizer “a forma como as coisas se apresentam à consciência”, e o termo “subjetivo” designava “as coisas como elas são”. Eram visões complementares no trabalho dos naturalistas de então, e de cientistas-poetas como Goethe depois, que buscavam ser fiéis à natureza amalgamando evidência e experiência em algo que não era nem ciência nem arte, mas comunhão.

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À medida que o método científico cartesiano se torna prevalente e a ascensão da burguesia passa a pautar as expressões artísticas por uma celebração do indivíduo, os significados do binômio objetivo/subjetivo se invertem e as estratégias para conhecer a realidade bifurcam por dois caminhos irreconciliáveis: a nova objetividade vira prerrogativa dos cientistas em sua busca imparcial por verdades universais, testáveis e reprodutíveis, enquanto a nova subjetividade passa a ser privilégio dos artistas para a expressão de verdades íntimas, inspiradas, desmedidas e episódicas. Esse estado de coisas é, como apontado na sua pergunta, fortemente contestável.

O que eu procuro fazer, tanto no meu trabalho acadêmico em biologia teórica quanto em minha produção literária como poeta e prosadora, é uma volta ao tempo daquela objetividade sensível que se perdeu nessa inversão semântica e nesse divórcio de práticas. Procuro retomar o que William Blake chamou de “ciência doce”. Reúno saberes, seres e sensações muito disparatados para articulá-los em novos corpos, narrativas, poemas, artigos científicos.

Nesse processo de formação, orgânico, as coisas acabam encontrando modos de equivalência entre elas. Assim, sentimento, razão, som, sentido, ambiguidade, erro, leis da física, mecanismos adaptativos, propriedades matemáticas, mecanismos evolutivos, deslocamentos de ar e mudanças de humor se equiparam: um acidente geográfico é ilha e solidão ao mesmo tempo.

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Em Números Naturais, a biologia permeia as várias dimensões do texto, está em seu embrião, no esqueleto e na pele, nas regras que articulam cada conto com o todo, no ritmo das repetições que geram padrões e simetrias, nos movimentos progressivo e regressivo que pautam a vida das personagens nas duas partes do livro, na abundância de metamorfoses, acasos e necessidades narrados, no uso de palavras do meu léxico familiar, que é biológico.

No entanto, minha recomendação seria ler o livro sem saber nada disso; não é preciso pensar em biologia ou matemática, não é preciso saber… Como afirma o filósofo Michel Serres em O Nascimento da Física, nos textos de Lucrécio, “saber não é ver, é entrar em contato direto com as coisas; de qualquer modo, elas chegam até nós”.

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O que mais a angustia na matemática da vida?

Não tenho muita tolerância para algumas convenções da vida prática, nem para a violência com que certas razões e medidas se impõem. Me angustia: ter dia e hora marcados para a alegria – adorar santos, celebrar pai e mãe, brindar o ano vestido de branco, tudo se acabar na quarta-feira; ter a existência medida em índices de produtividade, mortalidade, inflação, glicemia, massa corporal, liquidez; ter que agir conforme o prazo de entrega, a data de validade, o código de barras, a chave do PIX, a senha do cartão, a previsão do tempo, as milhas acumuladas.

Me angustia ainda mais: ver pessoas virando números, os números sendo manipulados, as medidas (provisórias) se cristalizando em leis (arbitrárias), as minorias naturalizando interesses menores, a maioria à margem da vastidão do mundo, a vertigem embaralhando escalas, os zeros colocados à esquerda como sinais de invisibilidade; os graus de separação aumentando exponencialmente, os graus centígrados, sentidos, subindo, o planeta derretendo.

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