A Escandinávia é distante de nós, não só em termos geográficos. O imaginário popular sobre a região se compõe de paisagens nevadas e fiordes que esculpem penhascos, onde um povo belo vive um sonho de inverno. Mas um giro por lá, como o que acabo de fazer, mostra uma realidade mais diversa.
Ainda que o começo do outono nórdico tenha nos recebido com temperaturas agradáveis, estar no gelado topo do globo impõe desafios. Se Suécia, Finlândia e Dinamarca figuram entre os dez países mais inovadores do mundo, deve ser porque “a necessidade é mãe da invenção”.
Há anos, eles exportam tendências de bem-estar, como o hygge dinamarquês (atitude que valoriza o aconchego e que se traduziria em ambientes intimistas e vida desacelerada) ou o sisu finlandês (algo como “força interior”, que revela uma alma resiliente e desbravadora).
“Se é possível ser feliz e tão saudável com um frio inclemente, por que não sob a luz tropical?”
Essas ideias ganham simpatia mundial porque os escandinavos estão sempre na lista dos povos mais felizes do mundo, assunto que já abordei aqui. O planeta todo se indaga sobre o segredo dessas pequenas nações. Digo que passa pela sobriedade. Aliás, são bastante discretos com os turistas, dispensando comentários empolgados sobre o Brasil e os brasileiros, como tantas vezes ouvimos em encontros com habitantes de outros países.
Indo além do soft power, há algo cotidiano em que eles se destacam. Falo da comida, que ilustra bem a inovação, a simplicidade e o clima locais. Nas últimas décadas, o bloco nórdico vem divulgando as bases de sua alimentação. Esqueça as latas de biscoitos, o bacalhau e o salmão. A filosofia é valorizar o que vem dali, tanto por sustentabilidade quanto por frescor. Daí preferirem alimentos da estação, mesmo que sejam nabos e batatas por muitos meses, até o verão trazer abundância. Os grãos são integrais e os alimentos, pouco processados.
Os preparos são simples. No dia a dia, sanduíches abertos — uma fatia de pão, em geral com peixe, como o arenque. Condimentos apenas sublinham os sabores naturais. Lembra a dieta mediterrânea, mas sem o azeite, já que as oliveiras são do sul. O óleo comum é o de canola, planta mais afeita a climas frios, usado com moderação (poupando calorias). A ênfase nos legumes e nos carboidratos complexos e o consumo comedido de laticínios fazem até a comfort food ser mais leve.
Em 2018, a OMS destacou a alimentação escandinava como uma das mais saudáveis do mundo. Neste ano, voltou a elogiar o bloco pelas recomendações nutricionais que privilegiam vegetais e pescados, pensando na saúde e no meio ambiente — o foco em sustentabilidade tem sido central nos posicionamentos dos nórdicos sobre nutrição. Esse empenho não está livre de contradições. Parte polpuda da receita da Noruega vem da exploração de petróleo e gases naturais, e a Finlândia se orgulha de colocar, ao lado dos banhos gelados, a carne de rena como um dos ingredientes de sua felicidade.
Os contrastes, porém, são também uma lição para nós. Se é possível ser tão feliz e saudável com um frio inclemente, por que não sob a luz tropical? Nosso clima nos dá de tudo. Podemos comer bem como eles, com menos esforço. Nosso agronegócio é forte e moderno, temos commodities, combustíveis e energia limpa. Deveríamos aprender com os escandinavos a assumir nosso lugar, o de país da fartura, capaz de conciliar a pujança econômica e um futuro sustentável.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862