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A política brasileira entre dois passados

O mais óbvio dos nossos equívocos é a incapacidade de perceber que o patrimonialismo se recusa a morrer

Por Bolívar Lamounier
Atualizado em 30 jul 2020, 19h43 - Publicado em 20 Maio 2019, 14h37
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  • Bolívar Lamounier (publicado no Estadão)

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    Em 1958, quando publicou Os Donos do Poder (Editora Globo), mestre Raymundo Faoro introduziu o conceito de patrimonialismo, estabelecendo por meio dele a mais clássica das clássicas interpretações da História brasileira.

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    Mas, parafraseando Ortega y Gasset, podemos dizer que toda grande obra é ela mesma e sua circunstância. Nós, leitores preguiçosos, lemos o título e deixamos de lado o subtítulo do livro. Neste ─ Formação do Patronato Político Brasileiro ─ Faoro esclareceu melhor o sentido de seu trabalho. O Estado patrimonialista deitava raízes na era medieval portuguesa, mas Faoro quis manter a dignidade do substantivo formação. Nós, imbuídos da ideologia desenvolvimentista que à época emergia com todo o vigor, não quisemos perceber o paradoxo que o grande historiador gaúcho ali deixara, de caso pensado. Otimistas, só queríamos pensar no futuro e acreditávamos piamente que a industrialização liquidaria todos os resquícios do passado colonial. Portanto, o próprio patrimonialismo haveria de fenecer naturalmente. Morreria de morte morrida logo que as chaminés das fábricas de São Paulo enchessem o céu com sua espessa fumaça. Não nos passou pela cabeça que o Estado patrimonialista era uma estrutura poderosa, capaz de resistir a pressões contrárias à sua índole.

    De nossa incapacidade de perceber a resiliência do patrimonialismo decorreram vários equívocos, o mais óbvio dos quais é que ele simplesmente se recusou a morrer. Está aí, perceptível a olho nu, agigantado e cada vez mais forte. Seu hábitat natural é, obviamente, Brasília, onde, sem dificuldade alguma, seus tentáculos sufocam e interligam os três Poderes. Estado patrimonialista, uma estrutura que vive em função de si mesma, que persegue os objetivos que ela mesmo escolhe, e o faz distribuindo o grosso da riqueza e as melhores oportunidades de ganho entre os “amigos do rei”. É certo que admite novatos, mas por cooptação, não como protagonistas autônomos, como bem explicou Simon Schwartzman no também clássico Bases do Autoritarismo Brasileiro(Editora da Unicamp).

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    Do equívoco que acima enunciei no atacado, penso que três outros merecem ser abordados no varejo: somos um país sem elites autônomas, sem classe média e sem partidos políticos.

    Teríamos elites autônomas se as tivéssemos fora do Estado, capazes de balizar as ações do núcleo estatal, impelindo-o a levar mais em conta o que, para abreviar, chamarei de bem comum. Os poderosos “de dentro do Estado” obviamente não são elites no sentido que acabo de definir; são o próprio Estado, os amigos do rei, vale dizer, de si mesmos. Os que não se deixam balizar por nenhum poder externo, pois detêm em caráter privativo a função de balizar a sociedade, de fixar e aplicar as normas, com a parcialidade que lhes parece adequada em relação a qualquer assunto e a cada conjuntura.

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    Do ponto de vista histórico, como aconteceu isso? Ora, sabemos todos que a grande atividade econômica do Brasil colonial era a lavoura canavieira. O consórcio colonial luso-brasileiro deteve o monopólio mundial do produto até meados do século 17. Começou a perdê-lo com a invasão holandesa, iniciada em 1624. Expulsos, entre 1654 e 1661, os holandeses pegaram seus volumosos capitais, a técnica dos engenhos e o respaldo da Holanda, então a rainha dos mares, e foram para a América Central, de onde, num abrir e fechar de olhos, destruíram a hegemonia luso-brasileira. Rápida no gatilho, a camada dominante da lavoura açucareira percebeu que dali em diante sua sobrevivência dependeria mais da política que da economia. E pulou para dentro do Estado, onde até hoje se encontra.

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    Algo semelhante, mas em menor escala, ocorreu com a extração do ouro e dos diamantes em Minas Gerais, mas o caso verdadeiramente instrutivo é o da cafeicultura paulista. Tendo viabilizado a passagem do trabalho escravo ao assalariado, ela também deteve por algum tempo um quase monopólio do mercado mundial do produto. Não menos importante, como esclareceu Celso Furtado, ela permitiu o surgimento de uma elite muito mais qualificada, capaz de pensar grande e de operar com tirocínio no mercado internacional. Mas a História se repetiu, embora por outros caminhos. A superprodução e a competição internacional não tardaram a aparecer e a brilhante elite cafeicultora o que fez? Reuniu-se em Taubaté, em 1906, e pleiteou também seu lugarzinho no colo do Estado. Nos primórdios da industrialização, a elite nem precisou pleitear nada, pois já nasceu aconchegada na estrutura corporativista montada por Getúlio Vargas, encaixando-se no sindicalismo de empregadores.

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    Demonstrar que tampouco dispomos de uma classe média capaz de sobreviver com os rendimentos da pequena empresa ou de empregos de boa qualidade é uma tarefa bem mais simples. Poucos anos atrás trombeteamos muito o surgimento de uma “nova classe média”, não nos dando conta de que toda série numérica pode ser subdividida em quantas subséries quisermos, e uma delas será “média”. Uma pena que os limites mínimo e máximo de tal subsérie eram constrangedoramente baixos. Nada que ver com uma classe média numerosa, robusta e autônoma, e é por isso, evidentemente, que temos uma das piores distribuições de renda do mundo: nossa “classe média” é um conjunto vazio entre a pífia minoria que maneja o Estado patrimonialista e a massa de miseráveis à qual tal Estado nem uma escolarização decente proporciona.

    E os partidos políticos? Ora, um partido político digno de tal designação tem como requisito fundamental a capacidade de se superpor a interesses demasiado estreitos, balizando-os no sentido do bem comum. Os nossos são incapazes de fazer isso porque no fundo eles não passam disto: são meros grupos de interesse, protagonistas do corporativismo desatinado a que nosso país chegou.

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