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Augusto Nunes Por Coluna Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
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‘O progresso que engana’, de Milton Hatoum

Publicado no Estadão desta sexta-feira MILTON HATOUM Há poucos dias visitei uma casa na rua Saldanha Marinho, no centro de Manaus, que é também o centro da minha infância e, portanto, da minha memória. Vi a mesma biblioteca com livros brasileiros, portugueses e franceses, a escrivaninha de cedro, os lustres antigos, os vitrais coloridos em […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 05h01 - Publicado em 8 nov 2013, 17h01
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  • Publicado no Estadão desta sexta-feira

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    Casa abandonada na Rua Saldanha Marinho (Foto:©KJhones)

    Casa abandonada na Rua Saldanha Marinho (Foto: ©KJhones)

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    MILTON HATOUM

    Há poucos dias visitei uma casa na rua Saldanha Marinho, no centro de Manaus, que é também o centro da minha infância e, portanto, da minha memória.

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    Vi a mesma biblioteca com livros brasileiros, portugueses e franceses, a escrivaninha de cedro, os lustres antigos, os vitrais coloridos em forma de ogiva. Atravessei o longo corredor lateral que dá acesso aos quartos e à cozinha e termina num pátio cheio de vasos com avencas e tajás. No fim desse corredor, sentada numa austríaca, vi dona Maria Luiza Freitas Pinto, a professora que me alfabetizou.

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    Aos 97 anos, com uma lucidez invejável, ela relembrou cenas de um passado remoto. Disse que eu sentava num banquinho feito por índios da Colômbia e conversava com Anna Telles, mãe de dona Maria Luiza.

    “Tu também gostavas de ver meu pai limpar discos com o rabo de um macaco barrigudo.”

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    Olhou para mim, viajando no tempo, e prosseguiu, orgulhosa:

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    “O grupo escolar Barão do Rio Branco ainda está de pé”.

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    De fato, o edifício antigo resistiu à barbárie que usurpou a memória urbana de Manaus. Comparado com a atual arquitetura da cidade, o estilo neoclássico do grupo escolar esbanja refinamento. Parece que os arquitetos se esqueceram do clima do equador. Mais fácil é projetar caixotes vedados, banindo varandas e janelões.

    Disse à professora que o jambeiro ainda sombreia o pátio do grupo escolar, que, hoje, é uma escola estadual; nos meses de inverno, o chão ficará coberto de flores vermelhas, os leões de pedra da entrada vão perder sua cor de açafrão, os pilares serão manchados de limo.

    “Naquela época”, ela disse, folheando o livro de crônicas que lhe ofereci, “havia respeito mútuo… E uma boa biblioteca em cada escola”.

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    Ela mencionou o prestígio do corpo docente, os exercícios em sala de aula – ditados, leituras, tabuadas e redações –, o mapa colorido do Brasil, com seus Estados e capitais, que os alunos deviam nomear.

    Mas ao lado desse mapa pendurado na parede, havia uma palmatória, eu disse.

    “Sim”, ela concordou. “Quando eu olhava para a palmatória, os alunos mais endiabrados se acalmavam. E tu não eras um santo. Naquele tempo, a disciplina… Mas havia educação doméstica, a disciplina começava em casa. Tudo isso acabou. E já não há mais amor na aprendizagem.”

    Recordei alguns amigos do Barão do Rio Branco: os mais pobres moravam em palafitas na beira dos Igarapés de Manaus e dos Educandos; arregalavam os olhos quando viam a merenda dos que moravam em terra firme: banana frita, tapioquinha, queijo-coalho, suco de graviola, guaraná Tuchaua. Eu invejava a caligrafia caprichosa de Paulo Tarso, e imaginava que ele tinha uma maquininha na mão direita.

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    “A caligrafia era um exercício necessário”, disse a professora. “Hoje em dia, poucos jovens usam um lápis ou uma caneta… O mais importante é saber ler e escrever. Saber pensar…”

    Foi uma visita breve: não queria interromper a sesta da professora. Antes de sair da casa verde, prometi a dona Maria Luiza que voltaria a Manaus sem muita demora.

    “Guardaste a redação?”

    Claro, eu disse.

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    A professora referia-se à primeira redação que escrevi no Barão do Rio Branco. Ela me entregara a folha amarelada em 1989, quando lancei em Manaus meu primeiro romance. O texto descreve uma viagem ao Careiro e é ilustrado por um desenho de uma fazendola.

    Numa viagem recente a uma comunidade rural do Amazonas, visitei uma escola pública, cujo estado era lamentável. Parecia um chiqueiro.

    Pensei nas crianças humildes dessas comunidades ribeirinhas, crianças e jovens sem qualquer futuro, ou proibidas de sonhar com o futuro. Mais de 10% da população do Amazonas é analfabeta. Enquanto me distanciava da casa da professora, pensava nas armadilhas do “progresso”, nas contradições entre a economia dinâmica da zona franca de Manaus e as desastrosas e ineficientes políticas públicas. Pensava nesse impasse, andando na rua sem sombra, porque na cidade equatorial, tão briosa de seu crescimento exuberante, não há calçadas nem árvores.

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