Até que ponto o selo DOC é garantia de qualidade de um vinho?
Primeira certificação de denominação de origem surgiu na Itália no século XVIII
Cada vez mais, dentro do esforço de diferenciar seus vinhos, os produtores destacam nos rótulos uma sigla considerada preciosa pelo mercado: DOC, abreviação para Denominação de Origem Controlada. Os italianos criaram o selo primeiro selo do tipo em 1716. Na ocasião, Cosimo III de Médici, grão duque da Toscana, publicou uma declaração em que delimitava as fronteiras e determinava as primeiras regras da produção de Chianti.
Durante muito tempo, a prática ficou restrita a Itália e a outros países europeus. Por aqui, até os anos 2000 o mercado do vinho parecia alheio a tais selos. Um dos pioneiros que contribuíram para mudar esse cenário foi o pesquisador Jorge Tonietto, da Embrapa, quando ele passou a conduzir uma série de experiências e degustações às cegas nas quais era notadamente perceptível as diferenças de vinhos de determinadas regiões do sul do país.
A conclusão: sim, a exemplo dos pioneiros italianos, o Brasil também poderia estabelecer critérios para conceder selos atestando que determinados rótulos foram produzidos dentro de uma região com um terroir específico, seguindo regras rigorosas de qualidade. “No início desse processo, tivemos que cativar os produtores, mas, ao longo do tempo, eles mesmos perceberam que as denominações dão mais visibilidade ao produto, trazem mais público inclusive para o enoturismo, grande motor do setor”, disse Tonietto à coluna AL VINO.
Atualmente quem conduz o processo é a Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale do Vinhedos (Aprovale). O consultor técnico da entidade, Jaime Milan é quem vai pessoalmente a cada vinícola retirar as amostras que passam por análises e degustações (sempre às cegas). “Já tivemos anos com baixíssima produtividade, quando apenas 20 a 25 vinhos eram recomendados para DO. Ao longo do tempo houve uma evolução técnica e profissional e nesta safra de 2024 recomendamos 29 rótulos, das 41 amostras apresentadas por 14 vinícolas”, afirma Milan.
O especialista da Aprovale conta que, certa vez, esteve em uma vinícola para retirar a amostra e o proprietário com orgulho mostrava a prensa que havia herdado do nono, mas não havia nem torneirinha para se retirar a amostra de vinho — obviamente, aquele produto não recebeu o selo. No ano seguinte, o mesmo produtor candidatou-se novamente e quando o consultor chegou na vinícola havia novos equipamentos. A torneirinha tinha sido devidamente instalada e a vinícola contava com um enólogo. Outro episódio que mostra a seriedade do processo aconteceu há cerca de cinco anos, quando um enólogo e proprietário de vinícola fez severas críticas a uma determinada amostra. A saia-justa se deu quando foi revelado que era o dele o vinho tão criticado. “Foi pedagógico”, lembra Milan. Para candidatar-se a ao selo de denominação de origem não há custo, mas é preciso ser associado e pagar a mensalidade à entidade. O valor varia de acordo com o tamanho da vinícola.
Hoje, o Brasil tem 12 IP (indicações de procedência) e duas D.O. (denominações de origem), sendo a primeira a do Vale dos Vinhedos, de 2012. Tonietto, da Embrapa, que segue absolutamente envolvido com o mapa das denominações de vinhos brasileiros, conta que mais duas devem estar para nascer: Vale do São Francisco, no Pernambuco, e o Sul de Minas, com os vinhos produzidos com a técnica de poda invertida. “O mundo do vinho tem muito dificuldade de falar para o mercado, diferentemente da turma da cerveja, que fala para multidões. Cada safra é única e tem uma história para contar. As denominações ajudam a contar essa história, a comunicar esse valor e a desenvolver as regiões”, defende.
Para Milan, da Aprovale, as DO ajudaram na evolução dos produtos. “Deixamos de ter vinhos muito tânicos, que nos é dado por uma característica de solo, Temos hoje vinhos da uva Merlot de médio corpo, com taninos domados e ótimo frescor”, diz ele. Dentre as regras estabelecidas para o produto receber a DOVV (denominação de origem Vale dos Vinhedo) estão o envelhecimento somente em carvalho, o uso de uvas de um limite demarcado e o respeito a prazos específicos para levar os produtos ao mercado. Os brancos podem ser vendidos a partir do sétimo mês da elaboração, os tintos precisam de pelo menos 12 meses dentro e os espumantes devem permanecer pelo menos nove meses sobre as borras (em contato com leveduras, cascas e polpa das uvas).
NEM TUDO O QUE RELUZ É OURO
Para o consumidor, até que ponto esses selos são realmente um atestado de que o vinho é bom? De fato, o certificado é um bom indicador de qualidade, mas não se pode confiar cegamente nele. Em outros termos, lembrando o velho ditado, nem tudo o que reluz é ouro. Tonietto, da Embrapa, conta que, no mundo inteiro, os certificados do tipo servem para promover as regiões, suas qualidades e originalidades. Ocorre que pode haver uma grande variedade dentro da mesma área. “Veja, Bordeaux, na França: ela tem na mesma denominação de origem vinhos de 2 euros e outros de 2.000 euros”, lembra o pesquisador. Obviamente, considerando-se essa enorme distância de preços, há também uma grande variação de qualidade. Milan, da Aprovale, também se recorda que durante seu mestrado na França, “não foi uma nem duas vezes que rejeitou o vinho, todos com suas respectivas AOC (Appellation d’Origine Contrôlée)”.
Outro indicador de que é importante não levar ao pé da letra o negócio vem da própria Itália, como mostra o surgimento da famosa categoria dos Supertoscanos. O termo cunhado pelo jornalista inglês Nicholas Belfrage, na década de 80, referia-se a vinhos de extrema qualidade, mas que usavam uvas de origem francesa em seus cortes, como Cabernet Sauvignon, Merlot e Syrah e não apenas Sangiovese, como ditava o livro de especificações de Chianti.
Ou seja: os (temperamentais) italianos, que criaram a primeira denominação de origem, também foram os primeiros a renegá-la.