O futuro pintado pela série Years and Years, da HBO, é assombroso. Pode-se ter a história como uma saga digna daqueles filmes de horror que dão um tremendo frio na espinha. Nela, em um resumo com o mínimo de spoilers (tentarei não estragar para quem ainda não assistiu a todos os episódios), políticos ganham eleições apoiados em dizeres xenófobos, racistas, simplórios, obscuros, e com a força das redes sociais (e outras das novas tecnologias digitais). Ou seja, tudo bem similar ao que ocorre hoje no planeta repleto de cópias cada vez mais amalucadas de Donald Trump, tomando o poder em países diversos (incluindo aí o Brasil).
Aliás, “Years and Years” parte justamente da realidade atual. No entanto, aí começa a se caminhar para anos e anos no futuro. Até culminar em uma sociedade refém da inteligência artificial, com indivíduos quase tão emburrecidos quanto aqueles do filme cult “Idiocracia” (de 2007), liderados por indivíduos malandros, mas estúpidos em igual patamar, e que chega à beira de uma destruição nuclear – opa, um lembrete, tomarei cuidado para não vazar os spoilers.
Será, porém, que seria esse mesmo o futuro da civilização? “Years and Years” é magnífico do ponto de vista técnico. É impecável a atuação de praticamente todo o elenco. Com destaque especial para Emma Thompson – no papel de uma versão feminina, inglesa e ainda mais tapada de Donald Trump –, Rory Kinnear – um cidadão qualquer que se vê destruído em meio a todo o caos – e a revelação Lydia West – adolescente que literalmente quer abandonar o próprio corpo para se transformar em dados digitais. Todavia, a mensagem por trás da história, que funciona perfeitamente dentro do mundo da ficção científica, pode acabar por soar forçada demais.
Ressalto, entretanto, o “pode”. “Years and Years” compra a tese daqueles com enorme temor (dos mais exagerados) dos governos de Trump, Bolsonaro, Erdoğan, Putin, Xi Jinping, dentre outras figuras similares que ascenderam ao cargo máximo de suas nações, nos últimos anos. Extrapola-se para o mais grave dos cenários prováveis.
Na história, os produtos da tecnologia moderna gradualmente transformam boa parte dos indivíduos em escravos digitais. A personagem de Lydia West, por exemplo, é uma garota que quer ser trans. Mas não transexual, o que seria muito bem abraçado por seus pais. Mas uma transumana. O que seria isso? Os pais dela, na ficção, se perguntaram o mesmo.
Pois, acredite, já existe hoje, no ano de 2019, movimentos transumanos. Tratam-se de pessoas que acreditam que o futuro é virar digital. Entenda aqui no literal: transformar-se em androides, culminando, no sonho da personagem de Lydia, na destruição do próprio corpo para que as informações armazenadas no cérebro sejam metamorfoseadas em zeros e uns da computação. Assim, essa alma virtual ficaria eternamente armazenada na nuvem (não falo aqui do céu cristão, mas daquela cloud dos entendidos de tecnologia).
Todos os personagens se revelam reféns das inovações do século XXI. Mesmo aqueles que não são adeptos acabam por se ver obrigados a conviver com a situação. De um lado tem uma criança que, de tanto usar uma tela em frente aos olhos, quase que 24 horas por dia, perdeu (ou nem desenvolveu) as capacidades sociais mais básicas – e nem sabe ligar a TV na tomada. Do outro, sua bisavó, matriarca de 90 anos de idade, se esquiva desse universo contemporâneo. Só que, ao mesmo tempo, tem um assistente virtual, uma IA, em casa, ajudando-a com tarefas rotineiras.
Talvez alguns observem esse caldo tecnológico como algo saído direto dos contos de Isaac Asimov. Nada disso. Aí tá uma qualidade enorme de “Years and Years”: são gadgets, softwares, avanços, já esperados para os anos vindouros. Imagina-se tão-somente quais serão as consequências dos mesmos.
Um dos efeitos direitos se daria na política. Assim como Facebook, Twitter e YouTube hoje possuem papel nas disputas entre esquerda e direita, no futuro toda inovação entrará nesse (recorrendo ao clichê) polarizado campo de batalha. Em “Years and Years”, tanto os mais extremos da esquerda, quanto os da direita, fazem o mundo explodir por tudo isso. E só quem tá lá em cima sai ganhando.
A população, em geral, parece retroceder não anos, mas séculos. Em vários sentidos. Como diz um dos personagens principais, gay, diante de seu então marido, que começa a acreditar em coisas como terraplanismo: “A raça humana está ficando cada vez mais burra”.
Sim, pode ser tudo uma, no português mais simples, “forçação de barra”. E tomara que seja, evidentemente. Todavia, vale aqui ter uma perspectiva histórica.
Às vezes a humanidade realmente descamba, perde qualquer bom senso, e muito da empatia coletiva, dando diversos passos para trás no progresso. E usualmente isso ocorre justamente quando se combinam fatores explosivos como: a chegada de novas tecnologias (como a inteligência artificial); mudanças dos meios de comunicação (Facebook, Twitter, YouTube…); saída do armário de extremistas de todos os espectros; turbilhão em questões comportamentais e sociais.
Imagine se algo como “Years and Years” fosse lançado entre a Primeira e a Segunda guerras mundiais. Se um trabalho ficcional tentasse prever o futuro, aí em transmissão no rádio. Talvez vendo com receio as então novíssimas ciências computacional, genética e, principalmente, a nuclear. Temendo a chegada de fascistas, nazistas e comunistas da URSS ao poder. E assim preconizaria a Segunda Guerra Mundial. Talvez, lá em meados da década de 1930, tudo isso soasse também exagero.
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A quem se vê como testemunha ocular da história, recorrendo aqui a clássico jargão do jornalismo, resta continuar a escrever sobre o agora. Mas com temor de como será o daqui a pouco.
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