“Aqueles que abdicam da liberdade em troca de um pouco de segurança, não merecem nem liberdade nem segurança”. A icônica frase de Benjamin Franklin (1706-1790) é para sempre atual. Assim o era antes de ser dita. Assim ainda é, enquanto existirem as relações humanas. Pois é o espírito que norteia a máxima que está por trás de um iminente julgamento no STF.
Na verdade, dois julgamentos que, em resumo, funcionarão para tão-somente um propósito: o de determinar se seria sensato realizar censura prévia na internet, em busca de impor limites à liberdade de expressão no meio online. Tema que já tem suscitado conflito entre as empresas digitais e entidades de proteção da liberdade de expressão (que publicaram hoje esta carta pública, confira no link), com aqueles em favor do cerceamento do direito que todos têm de manifestar as próprias opiniões.
Os julgamentos, que envolvem casos da Google – mais especificamente, ainda de uma prolongada história envolvendo o Orkut – e do Facebook, não importam ao contexto, de forma específica. Os simplificarei: são indivíduos que se sentiram ofendidos por comentários jogados nas plataformas online, pediram remoção do conteúdo, e querem responsabilizar os sites e apps pela origem dos mesmos.
Desde 2014, com a aprovação do Marco Civil da Internet, há um regime claro para lidar com esse tipo de cenário. Ele é explanado no artigo 19 da lei: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Ou seja, se alguém se sentir injustamente atacado na web pode, evidentemente, reclamar à Justiça. Se juízes decidirem que o indivíduo tem razão, aí se obriga sites e apps a excluir o conteúdo específico. Em acréscimo, e se Google (e YouTube), Facebook (e Instagram), Twitter e afins se recusarem a corresponder à ordem? Pagam indenizações, multas. No limite, correm o risco de fechar as portas no Brasil.
O Marco Civil da Internet é modelo global. Referência para juristas que quebram a cabeça, em todo o mundo, em torno de questões de como lidar com as inovações que surgem. Novidades tecnológicas e científicas que usualmente costumam aparecer antes de haver qualquer legislação para lidar com suas especificidades – assim foi com buscadores como o Google, a Uber, o Airbnb, e tantos e tantos outros produtos do século XXI. Todavia, não é de se surpreender que agora queiram mexer no que tem não só dado certo, como se consolidado como exemplo de solução.
Sabe aquele artigo 19? Pois, após os julgamentos destacados, o STF pode o ter como inconstitucional, inválido. Como ficaria? Plataformas digitais passariam a serem responsáveis por tudo e qualquer coisa que usuários publicassem, antes mesmo de haver qualquer julgamento sobre a legalidade ou ilegalidade do conteúdo.
O citado artigo deixava tudo nos conformes. Cabia às plataformas serem abertas a todos aqueles que não cometessem crimes claros e tipificados – racismo, pornografia infantil, evidentes discursos de ódio etc. As situações extremas, como as citadas, ou as que envolvem propaganda terrorista, por exemplo, já eram previamente barradas de publicação, seguindo determinações dos termos estabelecidos pelas gigantes da indústria digital, em alinhamento com expectativas da sociedade e de governos. Neste ano, visitei um dos centros do Facebook que se encarrega de deletar conteúdos impróprios, incluindo aqueles que driblam a barreira inicial imposta pelos algoritmos. É um trabalho hercúleo, mas que tem de ser exigido dessas companhias – e ponto!
O que passa na peneira de robôs e funcionários das redes sociais, motores de buscas, sites de vídeos? Assuntos que caminham em campos cinzas. Situam-se aí críticas a políticos, discussões ideológicas, incomodados com juízes do STF, dentre muitas outras situações.
Nesses casos é que se ativa o artigo 19. A plataforma não teria como julgar, por si só, se um conteúdo duvidoso seria ilegal, ou não, no país que fosse. Se fizesse isso, seria como dispensar o balanceamento de liberdade de expressão e garantia de dignidade e de privacidade, trabalho fundamental que cabe justamente ao STF. E, caso os ministros decidissem que as empresas teriam mesmo de remover algo de seus sites e apps, elas seriam obrigadas juridicamente a tal.
Tudo resolvido? Parece que não. Estranhamente, não.
Estava inicialmente marcado para semana que vem os julgamentos citados no início deste texto. Os resultados deles seriam determinantes para a discussão aqui apresentada. O STF, dono de papel fundamental para a democracia, optaria por ter o artigo 19 como constitucional, ou não. Após cancelar a data prevista, hoje (27) os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux sinalizaram que vão propor uma audiência pública, para retomar no Plenário no ano que vem.
O que nós temos de saber sobre tudo isso? Caso o artigo 19 se torne inconstitucional, YouTube, Facebook, Twitter, ou mesmo sites de notícias – em relação aos comentários de leitores, feitos no espaço dedicado a tal –, se tornariam responsáveis, de partida, por tudo que usuários postassem. Isso antes mesmo de qualquer avaliação da Justiça.
Se um youtuber, seja Felipe Neto, Nando Moura ou Henry Bugalho, falasse algo polêmico, qual seria a consequência? Poderia ser processado, como pode hoje ser. Entretanto, caso fossem condenados, o YouTube, por meio da Google, teria de pagar indenizações, responsabilizando-se previamente pelo o que esses comunicadores – ou seja, terceiros, de fora dessas corporações – dizem. Isso mesmo sem a noção de se o conteúdo seria ilegal, mesmo.
A mesma lógica valeria para instagrammers, assim como para políticos e ativistas. Qual seria a consequência prática? YouTube, Twitter, Facebook e similares já têm avisado nos bastidores: haverá censura privada, e prévia. As plataformas não vão colocar o delas na reta. Ainda mais em meio ao conturbado cenário político, social e jurídico de um país, o Brasil, que nem é o de sede dessas multinacionais. Se fosse nos EUA, seria outra história – como já foi, com Zuckerberg e outros se posicionando à favor da liberdade de expressão. Por aqui, a realidade é outra.
Sendo assim, qualquer fala mais polêmica de Felipe Neto, Nando Moura ou Henry Bugalho, assim como de políticos e de ativistas – vale repetir –, e de jornalistas que atuem como articulistas, seria impedida de ser publicada nas redes sociais. Essa será a consequência. Friso: censura prévia, executada por empresas privadas estrangeiras, em solo nacional, e por impulso de uma possível (e aguardada) decisão do STF.
Nos bastidores, o clima está tenso. De um lado, as plataformas digitais defendem a visão de que não querem realizar esse tipo de procedimento. Sim, elas compram para si mesmas a responsabilidade de garantir preceitos básicos, já indicados em seus termos de uso, calibrando algoritmos e equipes de profissionais para impedir a veiculação de atrocidades.
No entanto, essas companhias não se notam com a competência de predizerem o que pode ser tido como ilegal, ou não, em cada novo julgamento acerca do tema da liberdade de expressão. Se o artigo 19 cair, vão se resguardar à postura de simplesmente não permitir assuntos polêmicos em suas redes (da forma como algumas dessas já atuam na China, aliás) – em tempo: e isso vale também para ferramentas de blogs e de criação de sites. Corre-se o perigo de Facebook, Twitter, YouTube, territórios importantes para a discussão pública na ágora virtual (por mais que esses debates sejam conturbados, com fake news, ataques gratuitos, assassinatos de reputações, movimentos absurdos de “cancelamento” em massa…), virarem campos de puro entretenimento, de unboxing e slimes. Papos mais sérios seriam sumariamente deletados.
A bola agora foi passada ao STF. Caberá aos ministros, sabe-se lá exatamente quando, decidir para onde caminhará a liberdade de expressão no Brasil. Nos bastidores, está intenso o conflito entre representantes das empresas, com os atores políticos e judiciários envolvidos na peleja. Por enquanto, parece que o placar está a favor da liberdade de expressão. Vale batalhar para que continue assim. Para garantir o artigo 19. E assim garantir também a continuidade de um dos princípios mais básicos da sociedade democrática, assim brilhantemente descrito pelas palavras de Voltaire: “Posso não concordar com o que você tem a dizer. Mas defenderei até a morte o seu direito de falar”.
Em tempo:
Aliás, com o artigo 19 em voga, aí a sociedade (e a Justiça, como o STF) poderá ter também mais tempo, espaço e liberdade para cobrar outras responsabilidades que, aí sim, deveriam caber às mídias sociais, de YouTube a Facebook. Dois exemplos: o aprimoramento de algoritmos para que estes não ofertem em demasia, às vezes quase que apenas, conteúdos de teor radicalizado, extremo, pois estes mexem mais com as emoções do público; e a cada vez mais urgente necessidade de se pensar como exigir soluções das gigantes digitais para a recente destruição de empregos, frente ao advento de inovações como a inteligência artificial – reflexão proposta inclusive por Mark Zuckerberg, como destaquei em texto recente desta coluna.
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