Não é de hoje que há uma briga velada entre Apple, Google e Facebook pelos dados que fornecemos a essas empresas por meio de seus aparelhos, sites e apps. Dados que, frisa-se, são os diamantes coletados pelas três companhias, que disputam o posto de mais valiosas do planeta. Há razões comerciais e éticas para essa briga na qual não imperam processos, mas passadas de perna de todos os lados. Os últimos golpes dessa Guerra Fria ilustram bem o que está em jogo.
A história é a seguinte.
A Apple fornece há várias grandes empresas, supostamente idôneas, recursos de acesso avançado a informações de aparelhos como o iPhone. Facebook e Google estavam dentre essas empresas.
Só que aí o Facebook foi malandro. Aproveitou-se de uma brecha no sistema não para usar o privilégio para desenvolver os apps do próprio Facebook, tudo apenas dentre os funcionários, mas para coletar todas (destaco o TODAS) as informações possíveis de donos de iPhones. Fez assim: numa artimanha tecnológica, ofereceu pagar 20 dólares mensais àqueles que aceitassem instalar uma ferramenta grotesca – e contra qualquer regra da Apple e do bom senso – de rastreamento.
As pessoas pensavam só nos vintão, sem saber o que dariam direito em troca. E o que dariam em troca? Acesso a tudo que fizessem com seus iPhones.
Se entrassem em um site pornô, funcionários do Facebook saberiam, poderiam tirar print da tela e até, em teoria, ativar a câmera para ver as suas reações ao ver as fotos e vídeos. O mesmo vale para o que as pessoas fariam em seus e-mails, em páginas de e-commerce etc. Só ficariam de fora as transações bancárias (e só porque os bancos se protegeram bem de tal tática de hackeamento).
A Apple descobriu. Mas, em vez de dar só um aviso ao Facebook, foi radical: bloqueou o acesso da empresa ao recurso que possuíam. Aí virou um caos na empresa Facebook, pois funcionários passaram a não ter mais em mãos ferramentas de negócios que usavam no dia a dia. Virou uma bola de neve.
Walt Mossberg, principal jornalista de tecnologia do mundo (hoje, aposentado), defendeu a atitude da Apple em seu Twitter. Lá fez uma analogia. A Apple seria como uma rede de lojas na qual o Facebook gostaria de testar um produto. Só que o acordo seria só para testar esse produto em 3 das 100 lojas, de forma piloto. Só que aí o Facebook deu um jeito de enganar a Apple e enviar o mesmo produto a todos os clientes, das 100 lojas. O problema é que esse produto não era bom e queimava o filme da Apple com seu público. Foi aí que a Apple teve de romper o acordo, como um todo, com o Facebook.
Explicou-se a Apple, oficialmente: “Desenhamos nosso programa somente para distribuição interna de aplicativos dentro de uma organização. O Facebook tem usado esse direito para distribuir aplicativos de coleta de dados a consumidores, o que é um claro rompimento do acordo”.
Pouco depois se descobriu que o Google também se aproveitava de brechas similares para quebrar o acordo. No entanto, de maneira bem mais comedida. Talvez por isso a Apple não tenha punido em igual patamar a concorrente – que logo já se prontificou a parar com a patifaria.
O que está em jogo nisso tudo? O que é hoje o minério mais valioso do planeta: seus dados digitais.
Do lado da Apple, o CEO Tim Cook sempre afirma que a privacidade dessas informações será um direito primordial de cada um de nós. Por isso mesmo, a Apple tem de agir, segundo ele, como um cão de guarda que nos protege.
Já o Facebook, por trás de muita cortina de marketing, tem é de se aproveitar da exploração desse minério – que, em teoria, pertence a cada um de nós – para lucrar. Sem ele, seu modelo de negócios faliria. Tanto que, no passado, pensou até em criar uma iniciativa bem no estilo Big Brother de 1984: seria criado um “dark profile’ (perfil obscuro), sendo que mesmo quem não se cadastrasse no Facebook acabaria por ter um perfil escondido no site, feito pela própria empresa, que coletaria os dados desse indivíduo, de qualquer forma. Tal ideia só não foi para a frente pois culminaria na prisão de quem a executasse.
Depois disso, a gigante azul e branco colocou em prática outra iniciativa, menos ilegal, mas igualmente tenebrosa. Pelo Beacon – já aposentado, depois de muitas críticas e pressão pública –, o Facebook pegava informações de navegação de usuários mesmo quando eles não estivessem logados na rede social. O projeto só foi interrompido porque, digamos assim, “pegou mal”.
Mas agora se revela que não é que o Facebook tenha mudado de postura. Ele só alterou os métodos. Na bola da vez, aproveitou a brecha de iPhones.
Ou seja, de um lado tem uma empresa (Apple) que vê necessidade de proteger a privacidade dos clientes. Não sejamos inocentes: ela faz isso também pois é mais interessante para seu fim comercial.
Na outra ponta, uma que precisa escancarar a privacidade de seus clientes. Novamente, por ser mais interessante para seu fim comercial.
Como ficamos nós todos no meio dessa Guerra Fria? A lição que se aprende é que temos de rever as noções de privacidade neste século XXI. Estamos cada vez mais numa realidade que mescla 1984 com Admirável Mundo Novo, tendendo para o segundo cenário – no qual o controle de nossas vidas é feito de maneira mais sutil, quase invisível para a maioria das pessoas.
Ao saber disso, nós – assim como nossos governos – podemos pensar em como agir, se precisamos nos defender de algo ou se o jeito é relaxar e (…). Nesse cenário, talvez uma das melhores lições de como lidar com a questão venha da Austrália, que recentemente obrigou as empresas digitais a resguardar as informações de usuários e só explorá-las quando as autoridades necessitarem disso (como quando precisam localizar um criminoso).
Se não for esse o caminho, talvez outra solução seja simplesmente deixar tudo isso para lá. Jogar-se em Facebook e Instagram, sem medo de se viciar neles e ser explorado pelos mesmos, como se não “houvesse amanhã”, e quem sabe balanceando o lado negativo com o que julgamos que eles trazem de positivo.