Nascida em Israel há 75 anos, a bióloga molecular e geneticista Mayana Zatz é uma das estrelas da ciência brasileira no mundo. Professora da Universidade de São Paulo, ela está à frente de estudos sobre o genoma humano, com especial atenção para a população brasileira, e de pesquisas sobre xenotransplante, nome técnico do processo de transferir cirurgicamente um tecido de uma espécie para outra — em resumo, transplantar órgãos de animais para humanos.
Com essas credenciais, ela se uniu ao escritor Jorge Caldeira e ao neurocientista Sidarta Ribeiro para falar sobre a importância da tecnologia e o que esperar dela para os próximos 30 anos em uma conferência online na 16ª edição do Fronteiras do Pensamento. “A minha ideia é falar dos novos avanços que a gente teve nas últimas décadas e como isso está impactando a medicina do futuro”, disse a VEJA. “No final, queria discutir um pouco essa parte ética relacionada com esses avanços.”
A cientista sabe do que está falando. O projeto do estudo do genoma da população brasileira começou com a ideia de formar um banco de dados no modelo dos existentes em outros países. E evoluiu para entender os mecanismos e as variantes genéticas responsáveis pelo envelhecimento saudável. Já foram estudados genes de 1500 pessoas com mais de 60 anos. “Agora, estou focando nos centenários”, disse ela. “Queremos entender como chegar aos cem anos ou passar dessa marca de uma maneira saudável.”
Quando o assunto muda para xenotransplantes, a professora e pesquisadora se empolga. Neste campo, há vários projetos que se entrecruzam sendo desenvolvidos paralelamente. Um deles envolve a clonagem, que ficou famosa em 1997 com a reprodução em laboratório da ovelha Dolly, e a edição genética, tecnologia que deu Prêmio Nobel, em 2015, a Emmauelle Charpentier e Jennifer Doudna. “Estamos muito avançados”, disse ela.
Os suínos têm órgãos muito semelhantes aos dos seres humanos, mas ao transplantá-los do animal para o corpo humano acontece uma rejeição aguda. No entanto, já é possível modificar os genes que causam o rechaço e silenciá-los. Existem embriões de porcos modificados. “O próximo passo seria inserir esses embriões em uma barriga de aluguel, numa fêmea de suíno, e gerar clones que serviriam como doadores de órgãos para seres humanos”, disse a professora Mayana.
Outra tecnologia que está sendo desenvolvida é o de bioengenharia, que envolve a construção de um órgão a partir da reprogramação das células. A ideia, segundo a cientista, seria usar esse sistema para, por exemplo, reconstruir um fígado. “Pode-se pegar o fígado do cadáver de um doador, retirar todas as células e fica só o arcabouço”, explicou ela. “Então, recompõe-se esse esqueleto só com o sangue do receptor, usado para produzir todas as células hepáticas que serão usadas no novo órgão. É um projeto de futuro que parece bem plausível.”
A bióloga molecular também menciona o vírus da zika, que está no centro de uma descoberta fascinante. Em pesquisas de sua equipe, descobriu-se que o patógeno, quando infecta gestantes, ataca células responsáveis pelo crescimento do cérebro – daí a microcefalia. Como as células cancerígenas têm a mesma característica, passou-se a uma nova experiência com ratos que foram estimulados a desenvolver tumores no cérebro. Infectados com a zika, um terço deles viu o tumor regredir completamente. O mesmo método foi testado em cães, com resultados igualmente promissores.
Diante de tantos avanços a questão ética se impõe. Na visão da pesquisadora, o principal problema está relacionado à confidencialidade dos dados genéticos de cada indivíduo. Empresas de seguro e planos de saúde, para citar alguns setores, dariam tudo para ter em mãos informações sobre risco aumentado de patologias e predisposição para doenças de início tardio. “Houve casos de hackers que invadiram bancos de dados genéticos para roubar essas informações”, disse ela. “Tem que tomar muito cuidado porque os interesse comerciais vêm sempre antes das questões éticas.”
Quando a questão é investimento em pesquisas, a professora Mayana admite, com pesar, que “não está fácil”. Em São Paulo, diz ela, a Fapesp tem dado apoio, transformando a capital paulista em uma ilha de excelência. No entanto, o restante do Brasil, na sua avaliação, está muito difícil. “Realmente, temos de melhorar essa situação”, disse ela. “A partir da ciência básica é que se faz as descobertas. Quando fui pesquisar a zika, eu queria entender como o vírus causava microcefalia nos bebês. A partir daí, podemos ter um tratamento novo para tumores cerebrais que, até agora, pareciam intratáveis.”
Ela vai além. Acredita no investimento em ensino público básico para a construção de um país melhor. Explica que escolas fortes eliminariam a necessidade de se aplicar cotas, já que crianças e jovens estariam melhor capacitados a competir em pé de igualdade. Costuma falar também que o professor primário deveria ganhar mais do que o universitário, até para motivar a entrada numa profissão tão desvalorizada. “A importância de um professor para uma criança em formação é muito maior do que para um universitário que tem capacidade de estudar e se defender sozinho”, afirmou.
No fim dos anos 1990, Mayana esteve envolvida no primeiro sequenciamento genético de um patógeno de planta do mundo, a bactéria xylella fastidiosa, que ataca laranjas, um feito reconhecido internacionalmente e que mereceu capa da prestigiada revista científica Nature. Depois disso, a cientista lembra de estar em um congresso internacional no qual um dos organizadores anunciou aos presentes uma boa notícia e outra ruim. A boa era o anúncio do sequenciamento do patógeno, a ruim era que não tinham sido eles os autores da façanha. “Acho que a gente tem um pouco um complexo de vira-lata e não fala do que estamos fazendo de bom no Brasil”, disse ela. “Mas temos laboratórios excelentes que fazem pesquisa e não deixam nada a dever para nenhum outro no mundo.”