Longe das profundezas silenciosas do mar, em que a comunicação é feita quase sempre apenas por sinais, o mitológico oceanógrafo francês Jacques-Yves Cousteau (1910-1997) era um pensador arguto, cujas frases ecoavam para além de sua atividade profissional. “Desde o nascimento, o homem carrega o peso da gravidade em seus ombros. Ele é aparafusado à terra. Mas o homem só tem de afundar embaixo da superfície e ele estará livre”, disse. A frase poderia ser usada como divisa, sem tirar nem pôr, para o conservacionista e documentarista Fabien Cousteau, 52 anos, neto do célebre pesquisador, em seu atual (e espetacular) projeto. O nome: Proteus, em referência à divindade grega, o protetor dos mares, pastor dos rebanhos de Poseidon. O plano: a construção de uma estação subaquática de pesquisa a 15 metros da superfície, no Mar do Caribe, na transparência inigualável do azul-claro de Curaçao. A obra, a ser feita de mãos dadas com o desenhista industrial suíço Yves Behár, anunciada na semana passada, levará três anos para ser construída e consumirá pelo menos 135 milhões de dólares, algo em torno de 700 milhões de reais, reunidos por meio de doações (os nomes não foram divulgados). Depois de inaugurado, serão 3 milhões de dólares anuais para manutenção e funcionamento.
Trata-se de um edifício de 370 metros quadrados afeito a abrigar um laboratório de biologia com capacidade para doze especialistas e que o próprio Fabien já definiu como uma estação espacial “ao avesso”, ali onde nunca se esteve com calma e tempo para investigação minuciosa. Convém ressaltar que se sabe muito mais do espaço sideral, acima de nossas cabeças, do que dos oceanos, abaixo de nossos pés, largamente inexplorados. “A maior parte das experiências submarinas foi sempre efêmera, destinada a uma única e passageira investigação”, diz Fabien. “Não foi concebida como um empreendimento de longo prazo, como já se faz no cosmo.” O campo de investigações é vasto: conservação da fauna e flora, sem dúvida, acompanhamento das mudanças climáticas por meio do humor das águas salgadas e desenvolvimento de remédios para seres humanos — desde 1960, a agência americana de medicações, a FDA, aprovou treze compostos à base de produtos marinhos, e os especialistas acreditam haver muito espaço para ampliação dos resultados.
Há, para além das respostas científicas, um quê de nostalgia atrelado à figura romântica de Jacques-Yves Cousteau nos anos 1960 e 1970, que se tornou uma celebridade mundial, popular como um artista de cinema, tão conhecido quanto Alain Delon, para ficar em um exemplo conterrâneo. Fabien segue a trilha do avô, que em 1962 criou o Conshelf, uma cápsula submersa para apenas duas pessoas, a 10 metros abaixo da linha do horizonte no litoral francês, próximo de Marselha, capaz de afundar durante poucos dias. O Conshelf II ficava um pouco mais para baixo, coisa de 24 metros, e tinha autonomia para quase duas semanas. O Proteus, nem é preciso sublinhar, vai embarcado com tecnologias muito mais avançadas. Há ainda, em comum entre Fabien e Jacques-Yves, o apreço pelo espetáculo, a arte de transformar ciência em entretenimento, de buscar popularizá-la. Pretende-se fazer transmissões on-line, em canais das redes sociais, em altíssima resolução (16K), da visão das janelas do Proteus e das atividades internas, um aceno evidentemente moderno aos programas de TV quase mambembes, um tanto descolorizados, de décadas passadas.
“Temos hoje uma percepção equivocada de que já sabemos tudo”, diz o professor Brian Helmuth, um dos colaboradores científicos do Proteus. “Se há alguma pergunta, algo que se imagina não saber, proliferou a ideia de que basta ir à internet, e a Wikipedia trará as respostas. A sensação de que há muita coisa desconhecida foi perdida, e essa percepção é fundamental para reviver o apetite pela exploração.” Eis um dos chamarizes da aventura de Fabien Cousteau. “Sou um louco com um sonho”, ele resume. Sim, e já há planos de, a partir do Proteus, pôr robôs para descerem outros 180 metros. E então, como vislumbrou o Cousteau pioneiro, afundaremos mais e mais em nome da liberdade, a favor da ciência.
Publicado em VEJA de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698