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O poder do sonho

A neurociência explora um misterioso território: sonhar pode transformar-se em um motor para a criatividade e a elaboração de emoções

Por Jana Sampaio e Maria Clara Vieira
Atualizado em 17 jul 2019, 17h13 - Publicado em 7 jun 2019, 07h00

É o próprio Paul McCartney quem conta que em certa manhã de 1965, com os Beatles no auge, ele acordou na casa da namorada, Jane Asher, na Rua Wimpole, no centro de Londres, com uma melodia martelando na cabeça. Era Yesterday, que demorou meses para ganhar letra e viria a tornar-se uma das canções mais bem-sucedidas da banda: contabilizou 7 milhões de execuções no século XX. Será possível sonhar com uma música que não existe? A resposta é sim, e não há aí nenhum exercício de futurologia. Descobertas recentes — e surpreendentes — sobre o mundo dos sonhos, esse recanto da mente misterioso e pouco explorado, estão descortinando nessa atividade espontânea e mais livre das amarras do cérebro um espetacular manancial de criatividade, aproveitamento de ideias e estímulos ao conhecimento. “Sonhar é misturar informações, e isso pode promover o aprendizado e a imaginação em sua forma mais produtiva”, diz Tore Nielsen, pesquisador do Laboratório de Sonhos e Pesadelos da Universidade de Montreal, no Canadá. Quem disse que dormir é perda de tempo?

No caso de McCartney, o mecanismo que produziu Yesterday — que em sua primeira versão foi intitulada Scrambled Eggs (Ovos Mexidos), nome de tirar o sono de tão bizarro — é a capacidade que os sonhos carregam de funcionar como um “oráculo probabilístico”, expressão cunhada pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, autor do livro O Oráculo da Noite (Companhia das Letras), que reúne as mais relevantes pesquisas sobre sonhos ao longo da história e tem lançamento previsto para a próxima semana. “Os sonhos são tão proféticos quanto um diagnóstico médico ou a previsão do tempo, ou seja, refletem probabilidades que podem ou não coincidir com o comportamento real das coisas”, explica Ribeiro. Estudos recentes comprovam a habilidade cerebral, durante o sono, de combinar dados relevantes do presente com outros considerados perdidos no passado. “A maioria dos sonhos retrata emoções e experiências recém-vividas”, afirma o neurocientista americano Robert Hoss, presidente da Associação Internacional para Estudo dos Sonhos. Mas o passeio noturno livre, leve e solto das ondas que perpassam o cérebro também chega ao “baú” das memórias antigas, algumas quase inalcançáveis à mente consciente (veja o quadro abaixo).

Durante o sono mais profundo, chamado de REM, a queda brusca nos níveis da substância noradrenalina permite que as ondas cerebrais experimentem trajetos inusitados, em vez de fortalecerem sinapses utilizadas com frequência pela mente desperta. A liberdade de combinar memórias e criar enredos impossíveis também resulta da desativação parcial do córtex pré-frontal, área onde é processada a razão. Provavelmente, os acordes sonhados pelo ex-­beatle foram produto de uma junção de dezenas de melodias armazenadas na cabeça dele. “O novo, afinal, é uma combinação inédita de informações velhas”, reflete Ribeiro. Um estudo publicado pela Universidade de Turku, na Finlândia, postulou, a partir da análise de milhares de relatos, outra função dos sonhos no cotidiano das pessoas: os enredos oníricos podem funcionar como uma terapia noturna, na qual o organismo experimenta emoções e situações de interação social. “Os sonhos são um ambiente seguro de simulação emocional, em que o cérebro pode lidar com a frustração, o medo e a vergonha”, afirma o neurologista Leandro Teles, da Universidade de São Paulo. Isso explica, por exemplo, por que a jovem que termina com o namorado sonha com diversos cenários amorosos e pode até encenar encontros com desconhecidos nas semanas subsequentes — ela estaria, inconscientemente, tentando superar o trauma.

Qualquer que seja a intenção, digamos assim, dos sonhos, é inegável sua utilidade como retrato e motor da mente humana — daí o recente interesse da ciência pela ideia de controlar o que se passa na cabeça das pessoas adormecidas. Conhecido há milênios e visto com desconfiança até o fim do século XX, o chamado sonho lúcido — fenômeno no qual o sonhador está ciente de que está dormindo mas mesmo assim atua nas tramas — começou a ser esmiuçado na década de 80, com um estudo liderado pelo psicofisiologista americano Stephen LaBerge. Na pesquisa, ele mostrou que sonhos lúcidos são uma habilidade possível de ser estimulada. O mapeamento da ação das diferentes regiões do cérebro por meio de eletroencefalograma determinou 1) que o sonho lúcido existe e 2) que acontece em um estado intermediário entre a vigília e o sono REM. A atenção está voltada “para dentro”, como no sono, mas a consciência intencional que caracteriza a vigília permanece ativa.

Os cientistas Allan Hobson, da Universidade Harvard, e Ursula Voss, da Universidade Goethe, captaram a intensificação de ondas cerebrais rápidas no córtex pré-frontal, onde mora a razão, durante o sonho lúcido. Essa descoberta atiçou a comunidade acadêmica a investigar métodos — como uma pessoa pôr o despertador para acordar no meio da noite, ativar o consciente e depois dormir de novo — para aproveitar melhor o estágio intermediário dos sonhos. O desafio agora é esticar esse potencial para a assimilação de matérias escolares, por exemplo, e dar aos adolescentes o melhor dos mundos: aprenderem enquanto dormem. A primeira providência é acostumar-se a lembrar dos sonhos, uma questão de hábito. “Acordar e continuar alguns minutos na cama, refletindo sobre o sonho, e anotá-lo antes de sair correndo para escovar os dentes ajuda o cérebro a produzir os hormônios necessários para fixar a memória”, diz Ribeiro.

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INVASÃO DE PRIVACIDADE - O sonho no cinema: em ‘A Origem’, DiCaprio entra no inconsciente das pessoas (Stephen Vaughan/Warner Bros/.)

Sonhos intrigam o ser humano desde os primórdios da civilização. Na Grécia antiga, o filósofo Aristóteles acreditava serem eles uma função natural do organismo relacionada a premonições e cura das doenças. Quando as religiões ganharam força, os sonhos passaram a ser vistos como uma ponte para o divino. Sempre cuidadosa em manter seu monopólio nessa comunicação, a Igreja Católica da Idade Média mandava para a fogueira quem defendia a ligação, sob a acusação de bruxaria. O médico austríaco Sigmund Freud mudaria para sempre a maneira de encarar os sonhos a partir da publicação, em 1900, de um livro contendo a observação dos seus próprios, anotados em um caderno desde a morte do pai. A Interpretação dos Sonhos foi um fracasso de público e de crítica: a primeira tiragem, de 600 exemplares, levou oito anos para se esgotar. No fim do século XIX, sonhos eram um assunto relegado a artistas e associado à magia. “Freud foi o primeiro a defender a ideia de que eles não são só imagens aleatórias. Têm um sentido e, na maioria das vezes, estão vinculados a estímulos que vêm de dentro e não foram ainda interpretados”, afirma Dora Tognolli, da Sociedade Brasileira de Psicanálise.

Mesmo diante desses avanços, a neurologia passou quase um século sem dar maior atenção ao conteúdo dos sonhos, privilegiando a investigação do que acontece no cérebro durante o sono. A segunda metade do século XX traria, enfim, descobertas decisivas. Em 1953, uma pesquisa da Universidade de Chicago, publicada na revista Science, revolucionou o tema com a descrição do sono REM, lançando por terra a crença de que dormir era um processo homogêneo. Pelo contrário, há pedaços da noite em que a corrente elétrica que percorre os mais de 86 bilhões de neurônios se intensifica, gerando as mesmas ondas rápidas que mantêm o cérebro desperto de dia. É nesse período que os sonhos mais vívidos acontecem. “A única diferença entre o cérebro acordado e o cérebro no sono REM é que o adormecido está fechado aos estímulos externos e consegue focar em si mesmo”, explica Teles. Essa conclusão desencadeou uma avalanche de revelações. Sabe-se agora que dormir — e dormir profundamente, como ocorre durante o sono REM — é essencial para a consolidação das memórias e a organização das emoções, ao passo que a privação do sono afeta as lembranças, compromete o raciocínio e — como vivencia qualquer pai de recém-nascido ou estudante da madrugada — azeda o humor.

(Arte/VEJA)

O primeiro estudo científico a pôr o sonho em primeiro plano foi conduzido na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, a partir, como muitas vezes acontece no meio das ciências, do fenômeno oposto: o não sonho. Os pesquisadores observaram que as raríssimas pessoas que são incapazes de sonhar possuem lesões na área tegmental ventral, o ponto do cérebro onde ocorrem o armazenamento e a codificação dos impulsos mais primitivos do ser humano, como a busca pela sobrevivência e o medo da morte. Puderam concluir então que é a atuação desse grupo de neurônios, somada à intensa produção de acetilcolina e dopamina, neurotransmissores responsáveis pela potencialização emocional, que dá encadeamento às imagens e emoções revisitadas nos sonhos. “As evidências apontam para uma sequência visual organizada, capaz de ensaiar, valorizar e selecionar comportamentos. Não há nada de aleatório nos sonhos”, diz Ribeiro. Na maioria, por mais estapafúrdios que pareçam, eles retratam em algum nível as preocupações pautadas pelos instintos de recompensa e punição. “Os enredos que criamos enquanto dormimos refletem aquilo que nos preocupa de verdade e as emoções em evidência no cérebro”, afirma o neurocientista Mark Blagrove, da Universidade de Swansea.

A curiosidade da ciência pelos sonhos segue incentivando descobertas, boa parte delas próxima da ficção — esse terreno propício à explicação do inexplicável. Embora ninguém tenha conseguido, como Leonardo DiCaprio no filme A Origem, de 2010, entrar nos sonhos das pessoas e roubar segredos de seu subconsciente, já dá para, mais ou menos, descobrir o que uma pessoa está sonhando. Os pesquisadores americanos Jack Gallant e Tom Mitchell programaram algoritmos que conseguem revelar o que a pessoa adormecida enxerga ou pensa com base no mapeamento da atividade cerebral, comparando-o com dados coletados durante sua exposição a estímulos variados em estado desperto. Na primeira aplicação do método, em 2013, a equipe do neurocientista japonês Yukiyasu Kamitani “adivinhou” as imagens sonhadas 70% das vezes — aquém de um sucesso retumbante, mas bem mais do que mero acaso. Ainda que de forma incipiente, já é possível, portanto, “ler” a mente adormecida através da tecnologia. Aos poucos, sonhar acordado, essa habilidade tão romântica, vai ganhando um sentido cada vez mais frio e calculista.

Publicado em VEJA de 12 de junho de 2019, edição nº 2638

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