Quando a ciência surgiu, não existia uma separação entre ela e as humanidades. Na verdade, a filosofia da natureza foi onde nasceu a investigação do mundo natural, um exercício tão fortuito que se especializou mais e mais…até se isolar em caixinhas. Por muito tempo isso foi visto como um bom sinal, que teria permitido que cada área se desenvolvesse de maneira robusta, mas, hoje, faz falta uma maior intersecção entre essas duas áreas do conhecimento – e é exatamente esse o problema que grandes centros de pesquisa ao redor do mundo estão tentando resolver.
No Brasil, o primeiro passo foi dado pela Ilum, uma escola do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. A instituição científica existe desde a década de 1990 e se consolidou como um dos principais polos de pesquisa de ponta no país, mas a escola, que tem apenas um curso de graduação, nasceu em 2021. “Nós sentíamos que existia uma lacuna de formação interdisciplinar”, disse o diretor da Ilum, Adalberto Fazzio, em entrevista a Veja. “A ideia de ter uma carga forte de humanidades está presente desde o início.”
Por que incluir humanidades no estudo de ciência?
O anseio de Fazzio e dos outros fundadores da escola encontra forte lastro na realidade. Hoje, quase todas as formações em ciência tem duas ou três disciplinas voltadas para as matérias de humanidades, geralmente filosofia e sociologia. O problema é que elas são apresentadas sem que fique claro a importância delas para a pesquisa. Isso faz com que, muitas vezes, as linhas de investigação sejam desenvolvidas sem que se pense no retorno para a humanidade, na comunicação para os leigos, nos possíveis impactos negativos ou até no bem-estar dos pesquisadores.
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E isso não foi percebido apenas por aqui. Instituições como a Arizona State University, nos Estados Unidos, o Institute of Science and Technology, no Japão, ou a University Alliance Ruhr, na Alemanha, também fizeram um esforço para incluir as ciências humanas nos cursos que são voltados para os estudos naturais. “Nós analisamos as iniciativas dessas universidades, mas o modelo da Ilum é único e foi completamente desenvolvido por nós”, diz Ivia Minelli, docente pesquisadora da Ilum e da Universidade Estadual de Campinas.
Minelli refuta o conceito de voltar às origens e defende que a ideia é mostrar que essas duas ciências são intrinsecamente conectadas, o que faz com que os pesquisadores pensem criticamente e tenham mais agência sobre a influência de uma na outra. De maneira simplificada, funciona assim: em todos os semestres os alunos têm uma disciplina prática e uma teórica nessa área e, ao longo da trajetória, entendem os conceitos e discursos, refletem sobre a estrutura da sociedade, investigam a história do raciocínio científico, são imersos na ideia de antropoceno e desenvolvem até peças de teatro para consolidar a forte relação entre as artes e as discussões científicas correntes.
Como isso influencia a formação dos alunos?
O curso de Ciência e Tecnologia recebe apenas 40 alunos por ano. O processo seletivo – que consiste em uma carta de intenção, resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e entrevista – tem como foco alunos de todo o país que tenham interesse pela ciência, mas não em apenas uma das áreas. (Aqui, um porém: embora a pluralidade apareça de maneira mais ou menos natural, por enquanto ainda não há qualquer dispositivo no pleito que garanta uma diversidade representativa entre os alunos.)
A maior parte deles recebe com alguma resistência a ideia de estudar disciplinas das ciências humanas, mas antes mesmo do segundo ano de curso eles já abraçam a ideia. “As humanidades dentro da Ilum nos fazem refletir sobre como nós podemos fazer com que a pesquisa desenvolvida aqui chegue a toda a sociedade brasileira”, diz Eduarda Veiga Carvalho, que integra a primeira turma a concluir a graduação da Ilum, no fim de 2024, e cujo trabalho de conclusão de curso é voltado para entender o impacto das notícias falsas na vacinação.
E o ineditismo do curso não se restringe às humanidades. Com foco na interdisciplinaridade, os alunos têm contato com diversas áreas das ciências – desde o primeiro semestre, tem aulas sobre física quântica, aprendizado de máquina e estruturas biológicas, por exemplo. E de fato essa parece ser uma tendência: no Nobel de 2024, os prêmio de física e química abriram discussão por não se restringirem aos seus campos.
E não para por ai. Além do contato com disciplinas diferentes, os alunos tem grande proximidade com seus professores e orientadores, são estimulados a colocar a mão na massa desde os primeiros dias de curso, realizam diversas atividades no CNPEM, tem assistência psicológica e ganham moradia e alimentação por todo o período da graduação. Tudo isso de maneira completamente gratuita. O resultado, ainda que a primeira turma ainda não tenha se formado, já começa a aparecer: além da baixíssima taxa de desistência, um boa parte dos alunos já tem vaga direta no doutorado, sem precisar de um título de mestrado, algo pouco comum nas universidades brasileiras.
Não é o caso de aplicar esse modelo em todos os cursos de graduação do país, isso seria inviável, em especial sem cobrar valores astronômicos. Vale, no entanto, pensar criticamente sobre o perfil de alunos que estão deixando a universidade – um ambiente mais saudável e uma maior capacidade de conectar a ciência à sociedade, certamente, não faria mal a ninguém.