Poucas rivalidades na história do capitalismo — e certamente nenhuma na indústria da tecnologia — foram tão intensas, divertidas e fecundas quanto a que marcou a trajetória de Bill Gates, fundador da Microsoft, e Steve Jobs (1955-2011), criador da Apple. Durante pelo menos três décadas, os dois gênios transitaram entre os campos do antagonismo profissional e da inveja pessoal pura e simples, disputando o domínio do mercado e a reverência da sociedade, enquanto a corrida tecnológica fervilhava. Eles não poderiam ser mais diferentes. Gates era um nerd tímido. Jobs, um hippie contestador. Cada um ao seu modo, influenciaram milhões de pessoas e acabaram, mesmo que sem a intenção, transferindo a oposição entre eles para os fãs. No decorrer dos anos 1990 e 2000, no auge da rivalidade, os applemaníacos torciam o nariz para qualquer lançamento da Microsoft. No outro lado do ringue, os admiradores de Gates desprezavam os produtos da empresa da maçã. Os dois grupos jamais mudariam de opinião, mesmo se estivessem diante de uma grande obra: na cabeça deles, estava nitidamente cristalizada a ideia de que, se a Apple era boa, a Microsoft deveria necessariamente ser ruim — e vice-versa. De maneira simplificada, essa visão de mundo poderia ser traduzida como uma típica teimosia.
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Clique e AssineUm estudo publicado pela revista científica britânica Nature e conduzido por pesquisadores da University College London apontou, pela primeira vez, os processos neurais que levam à dificuldade de mudança de opinião depois que um conceito se solidifica no cérebro. Não seria exagero afirmar, portanto, que os cientistas descobriam o que está por trás do cabeça-dura, aquele sujeito que jamais altera seu ponto de vista, mesmo se todas as evidências mostrarem o contrário do que ele pensa. No estudo, 75 voluntários precisavam decidir se uma nuvem de pontos pretos estava se movendo para a esquerda ou para a direita. Depois, eles indicaram até que ponto estavam seguros sobre aquela escolha. Na sequência, os participantes receberam mais informações sobre os pontos pretos, que deixaram mais claro qual era a direção correta. Contudo, aqueles que indicaram níveis mais altos de confiança sobre a primeira decisão não absorveram os dados adicionais que poderiam corrigir um erro de avaliação — reação conhecida como “viés de confirmação”. Com um scanner de magnetoencefalografia, os pesquisadores acompanharam a atividade cerebral durante o processo de tomada de decisões. A explicação para o comportamento se tornou química: o cérebro apresentou “pontos cegos” quando recebeu informações contraditórias, mas continuou sensível àquelas que confirmavam a escolha inicial.
A pesquisa se diferencia por demonstrar que o viés de confirmação existe até mesmo no caso de uma atividade extremamente simples, como acompanhar pontos pretos na tela de um computador, de acordo com o psicólogo e neurocientista Max Rollwage, o principal autor do estudo. “A falta de elementos complexos, como ideologias e relações afetivas, mostra que o processo é central dentro de um mecanismo muito básico”, disse ele a VEJA. Em situações mais abrangentes, como a maneira de as pessoas interpretarem informações sobre a pandemia da Covid-19, por exemplo, pode ser ainda mais difícil mudar de opinião. “Evidências científicas sobre o coronavírus evoluem rapidamente e é preciso absorver as atualizações e mudar comportamentos e crenças de acordo com as novas constatações”, afirma o especialista. Nesse caso, portanto, os conceitos preestabelecidos estão tão arraigados no cérebro que o indivíduo resiste a absorver percepções diferentes.
A psicologia do comportamento humano é descrita há muito tempo na literatura universal e desde os anos 1960 existem relevantes estudos científicos sobre o assunto. A novidade agora é que os pesquisadores conseguiram esclarecer de que forma a química da teimosia se manifesta na mente. “Até o nosso estudo, uma das hipóteses era que as pessoas recebiam informações conflitantes, mas poderiam escolher desprezá-las”, diz Rollwage. “Com a avaliação dos mecanismos neurais, mostramos que, em determinado ponto de confiança sobre uma crença, o cérebro simplesmente não processa as novas informações.” Isso pode explicar por que os negacionistas do aquecimento global mantêm suas convicções apesar dos cada vez mais irrefutáveis argumentos científicos, ou por que os terraplanistas sustentam que a Terra não é redonda apesar das estonteantes imagens de satélites que confirmam, evidentemente, que o planeta é uma imensa bola azul (leia o quadro na pág. 66). Lógica idêntica ajuda a entender, na política, os motivos para a polarização radical, que não cede espaço a visões mais moderadas. Mesmo se houver provas em contrário — denúncias de corrupção, flertes com o autoritarismo — os cabeças-duras não abandonam seus políticos de estimação, sejam eles de direita ou de esquerda.
Os conceitos estabelecidos por grupos sociais são ainda mais difíceis de mudar. “A característica fundamental do ser humano é formar coletivos”, diz Paulo Boggio, psicólogo e coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Dentro dos grupos, diz Boggio, a ideia de sobrevivência e a aproximação com aqueles similares a nós levam as pessoas a pensar de maneira parecida. Com o passar do tempo, as convicções semelhantes são reforçadas em conjunto e acabam se tornando pilares complicados de derrubar. É exatamente esse mecanismo que alimenta as torcidas de futebol, com o seu fanatismo que muitas vezes resulta no ódio ao rival (e, infelizmente, em cenas de violência). O mesmo conceito está por trás de grupos extremistas, radicais religiosos e facções de todos os tipos, incapazes de compreender ou ao menos escutar o outro. Com o cérebro programado por ideias preconcebidas, os integrantes dessas comunidades são impermeáveis a mudanças de comportamento.
Nem sempre, porém, é possível estabelecer uma resposta certa ou errada para muitas questões. Nas sociedades livres, a diversidade de opiniões e o debate entre pessoas que pensam de forma diferente são a maneira de chegar a um consenso e evoluir em pontos divergentes. Também é preciso dizer que, desde que uma ideia não provoque danos a princípios civilizatórios, ela pode ser defendida até o fim. Não são raras as ocasiões em que a teimosia demonstra seu valor. A inglesa J.K. Rowling, autora da saga Harry Potter, teve seus originais rejeitados por doze editoras antes de se tornar uma recordista em vendas de livros. Grandes gênios da inovação igualmente sofreram com o desdém de outros e, não fosse a irredutível obstinação, produtos como o iPhone, de Steve Jobs, ou o Windows, da Microsoft, talvez ficassem pelo caminho. Sem a insistência típica dos vencedores e a sequência de erros e acertos que constitui a construção do pensamento científico, o mundo certamente seria um lugar pior. A teimosia, porém, não faz sentido quando sustenta convicções comprovadamente equivocadas. Por mais que o cabeça-dura não acredite, a Terra é redonda, o planeta está aquecendo e Jobs e Gates produziram obras extraordinárias.
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692