Antes do surgimento da identificação por DNA, em 1985, as discussões sobre vínculos biológicos entre indivíduos tinham como ponto de partida um critério nada científico: a aparência. O “teste de paternidade”, por assim dizer, era o grau de semelhança entre pai e filho. Foi o avanço da tecnologia que permitiu a determinação exata da existência ou não de laços de parentesco — e até de doenças genéticas. Para o antropólogo paulista André Strauss, professor da Universidade de São Paulo, o mesmo salto de qualidade que se verificou entre o vínculo biológico e a infalibilidade do teste do DNA pode ajudar a entender a novidade que acaba de vir à tona sobre o povoamento das Américas — novidade produzida por dois estudos que o próprio Strauss coordenou, ao lado de colegas de instituições da Alemanha e dos Estados Unidos.
Até agora, a teoria mais aceita sobre o assunto fora formulada nos anos 1990, pelo antropólogo mineiro Walter Neves, mentor de Strauss, que se baseou na comparação com a forma do crânio humano mais antigo das Américas, batizado de Luzia, encontrado em Lagoa Santa, Minas Gerais. Segundo Neves, a povoação do continente americano ocorreu a partir de duas ondas migratórias, ambas originadas na Ásia, mas de povos e épocas distintas. Analisando desde 2011 o genoma de 49 fósseis descobertos nas Américas Central e do Sul, Strauss e cientistas do Instituto Max Planck e da Universidade Harvard concluíram que houve uma única onda de migração para o continente americano.
Os dois estudos acabam de ser divulgados nas prestigiosas revistas científicas americanas Science e Cell. Com a nova tese da onda única, até mesmo as feições do povo de Luzia foram reconfiguradas. “Três décadas atrás havia uma limitação técnica para o estudo genético de fósseis. Agora é possível analisar o DNA extraído de ossos com 10 000 anos”, explica Strauss. Na essência, a rota da migração humana continuou a mesma. Recapitulando: entre 100 000 e 200 000 anos atrás, a nossa espécie deixou a África, seu berço, em direção à Ásia e à Europa, até cruzar o Estreito de Bering e chegar ao Alasca, na América do Norte, de onde desceu para o sul.
Em sua tese, Neves usou a reconstituição da aparência do fóssil brasileiro mais famoso para argumentar que Luzia descendia de uma onda migratória anterior àquela que teria dado origem aos índios da época de Cabral e teria acontecido da Ásia para a América. Com os testes genéticos, ficou comprovado que esse fluxo Ásia-América do Sul nunca ocorreu da forma como Neves propôs. Luzia, que tem cerca de 11 000 anos de idade, foi parente distante apenas de ameríndios instalados na América do Norte — não apresentando vínculo com nenhuma população de fora do continente.
O crânio de Luzia foi encontrado em 1975 pela arqueóloga francesa Laming-Emperaire, mas só ganhou fama com a divulgação da tese de Neves, em 1998. Ele havia começado a estudá-lo no início dos anos 90 e, naquela época, já ensaiava a sua teoria. Em viagem à Dinamarca na década de 80, o antropólogo tivera contato com crânios que o naturalista dinamarquês Peter Lund havia coletado em Lagoa Santa no começo do século XIX. Neves constatou que os brasileiros pré-históricos possuíam características semelhantes às das populações originárias da África e da Austrália. Naquele momento, a teoria predominante defendia a tese de que o povoamento das Américas havia ocorrido exclusivamente por meio de viajantes oriundos da Ásia que já tinham feições próximas às dos atuais chineses e dos índios americanos — e não, como acreditava Neves, também por meio de um fluxo migratório, vindo igualmente da Ásia, da população que ainda possuía apenas feições africanas. Para que isso fosse possível, a travessia deveria ter acontecido entre a Rússia e o Alasca via Estreito de Bering, passagem que se tornou transponível na Era do Gelo, encerrada há 16 000 anos.
Uma das grandes descobertas, graças ao exame de DNA dos fósseis, é que os antigos habitantes de Lagoa Santa eram descendentes da cultura Clóvis, grupo famoso por produzir objetos pontiagudos usados como armas, lanças e canivetes, encontrados originalmente na cidade americana de Clóvis, no Estado do Novo México. “Esse dado é inédito. Nunca se contou a história das Américas dessa forma”, afirma Strauss. Até então, a cultura Clóvis só havia sido identificada nos EUA. Quando o grupo se dispersou para o sul, por algum motivo ainda inexplicado, parou de fabricar aqueles objetos. Por causa disso, fósseis que foram encontrados em Belize, na América Central, no Chile e em Lagoa Santa, caso de Luzia, nunca haviam sido devidamente conectados ao povo de Clóvis.
Foi por muito pouco que o simbolismo de Luzia não se transformou em cinzas no dia 2 de setembro deste ano, data em que o Museu Nacional, no Rio, foi arrasado por um incêndio. Ela ficou desaparecida até meados de outubro, quando pedaços de seu crânio foram localizados nos escombros. Em contraponto, Strauss aguarda a possibilidade de trazer a técnica de análise genética do Instituto Max Planck para o Brasil: neste ano, a Fapesp, fundo paulista de amparo à pesquisa, aprovou a liberação de 1,5 milhão de reais para montar o primeiro laboratório de arqueogenética do país, na USP. Com isso, será possível reconstituir as feições de outros fósseis e até mesmo determinar se parentes foram enterrados um ao lado do outro. Cabe aos futuros governos decidir se permitirão que essa história avance — ou desapareça.
Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2018, edição nº 2608