Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

A extraordinária investigação do cérebro de Eder Jofre

A família do pugilista doou o cérebro para que ele seja dissecado. É um passo para a identificação dos danos provocados pelos socos do boxe

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 21 out 2022, 10h48 - Publicado em 21 out 2022, 06h00

Em junho de 2014, uma reportagem de VEJA revelou que Eder Jofre, o maior boxeador brasileiro de todos os tempos, sofria de encefalopatia traumática crônica — originalmente conhecida no meio científico como “demência pugilística” — e não de Alzhei­mer, como se imaginava até então. A descoberta, feita a partir de uma bateria de exames supervisionados pelo neurologista Renato Anghinah, representou uma mudança de tratamento e de sobrevida digna ao campeão. Com o diagnóstico, Anghinah retirou os medicamentos que Jofre tomava contra o suposto Alzheimer, e que o deixavam prostrado, e lhe indicou substâncias afeitas a estimular os receptores de dopamina. Depois, prescreveu remédios à base de canabidiol, de modo a reduzir os episódios de agitação noturna.

Jofre morreu em 2 de outubro, aos 86 anos, de sepse urinária e insuficiência renal aguda. Ele estava internado desde o início do ano com um quadro de pneumonia. A VEJA, há oito anos, os filhos de Jofre se comprometeram a doar o cérebro do pai para estudos mais aprofundados, e foi o que aconteceu. É como se o esportista tivesse uma segunda vida, destinada a ajudar a ciência, em um movimento a um só tempo ético e histórico. “A contribuição de Jofre para a medicina é fundamental e comovente”, diz Anghinah. Lembre-se de que nem mesmo o fenomenal Muhammad Ali (1942-2016), que em vida lutou pelos direitos civis e contra o racismo, teve a grandeza do brasileiro. O americano, que sofria de Parkinson, chegou a ser sondado por reputados centros de estudo, mas rechaçou a ideia de oferecer seu legado médico.

EM AÇÃO - O Galo de Ouro no ringue: 81 lutas e apenas duas derrotas, por pontos -
EM AÇÃO - O Galo de Ouro no ringue: 81 lutas e apenas duas derrotas, por pontos – (Acervo UH/Folhapress/.)

Jofre foi cremado. Seu cérebro — uma massa de pouco mais de 1 quilo — foi inicialmente acondicionado em uma embalagem com gelo-seco e depois endurecido para conservação. Ele está agora no Gerolab, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o maior banco de cérebros da América Latina. O trabalho tem o apoio da  Concussion Legacy Foundation, criada por um ex-atleta do futebol americano e um reputado neurocirurgião. Ao longo dos próximos seis meses, a massa cinzenta será cuidadosamente retalhada em lâminas microscópicas pela equipe da neuropatologista Roberta Diehl. O objetivo: detectar, minuciosamente, os danos provocados por choques sucessivos. Apesar dos extraordinários recursos tecnológicos de análise por imagem, o estudo mais preciso da encefalopatia crônica só pode ser feito depois de exames anatomopatológicos, a partir da dissecção do cérebro.

A família Jofre repetiu o gesto dos filhos e da ex-mulher do zagueiro Hilderaldo Luís Bellini (1930-2014), o vascaíno que ergueu a Jules Rimet pela primeira vez, na Copa do Mundo de 1958. Havia a hipótese de que as cabeçadas na bola e sobretudo o contato com o crânio dos adversários pudessem provocar estragos — e foi o que constataram os exames depois de sua morte. Bellini também sofria de encefalopatia crônica, caminho para problemas cognitivos e de memória. Não por acaso, apoiada em estudos similares realizados nos Estados Unidos, a International Football Association Board (Ifab), entidade que estabelece as regras do futebol, enviou a confederações nacionais, em agosto, uma recomendação para que jogadores das categorias de base de até 12 anos sejam proibidos de cabecear a bola mesmo em treinos. A mudança segue recomendações médicas a fim de reduzir as concussões e lesões cerebrais.

Continua após a publicidade
CAPITÃO - Bellini: seu corpo também foi submetido a exames de anatomia -
CAPITÃO - Bellini: seu corpo também foi submetido a exames de anatomia – (./Reprodução)

A investigação do cérebro de Jofre é extraordinária, dado vir de um esportista que, ao longo de pelo menos quinze anos, sofreu pancadas — embora ele batesse muito mais do que apanhasse, em uma carreira com títulos mundiais em duas categorias, a dos galos e pena, com 81 lutas, 75 vitórias, 52 nocautes e apenas duas derrotas, por pontos. A medicina explica o que acontece com um cérebro em movimento: a cada pancada, o órgão chacoalha dentro da caixa craniana, e é inevitável que se choque contra suas paredes. Nesse vaivém, os neurônios sofrem rupturas. Como consequência, ocorre a liberação da proteína tau — em quantidades normais, ela é responsável pela boa estrutura dos neurônios. Com os socos, volumes exponenciais da proteína se acumulam no cérebro e viram veneno. A tau é liberada duas horas depois do trauma e fica lá por três meses, no mínimo. Ao longo da carreira, a caixa craniana de Jofre foi inundada por um mar tóxico de proteína tau. A nova etapa de investigação pode vir a confirmar o que os exames de imagem constataram.

As revelações finais do cérebro do pugilista podem fornecer o argumento decisivo para uma proposta que ganha força: a de que boxeadores profissionais lutem com protetores, como acontecia nas Olimpíadas. É uma maneira de celebrar a beleza da chamada nobre arte, subtraindo-a de sua malignidade. “A generosidade de meu pai, que sempre defendeu a doação, pode ser atalho para um futuro mais saudável do esporte”, diz Marcel. “É decisivo que no boxe se acompanhe a saúde dos atletas, com cuidado, em nome da vida.” O derradeiro gesto de Eder Jofre, ao ter seu cérebro oferecido para a academia, o faz ainda maior, para além da genialidade dentro e fora do ringue do eterno Galo de Ouro.

Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.