Na quarta-feira 2, o Supremo Tribunal Federal voltou a julgar um processo que pode mudar o entendimento sobre a maconha no Brasil. De caráter de repercussão geral, a ação foi apresentada pela Defensoria Pública de São Paulo contra a condenação de um homem flagrado com 3 gramas da droga em 2009. O caso começou a tramitar na Corte em 2011 e parou de andar em 2015, quando Teori Zavascki pediu vista. Após a sua morte, em 2017, o processo ficou com seu substituto, Alexandre de Moraes, que o devolveu ao plenário no fim de 2018. Desde então, nada aconteceu, até que a presidente Rosa Weber trouxe a discussão novamente à pauta. Moraes deu, então, o quarto voto pela descriminalização — antes, Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso haviam se manifestado no mesmo sentido. O julgamento foi suspenso por sugestão de Gilmar, o único a estender a medida a todas as drogas, para que os magistrados pudessem buscar uma posição alinhada. Mas já é possível dizer que, em razão do perfil dos ministros, o desfecho tende a ser em favor da flexibilização da posse de Cannabis para uso recreativo, o que seria a maior mudança da Lei Antidrogas desde que ela entrou em vigor, em 2006.
Enquanto isso, a utilização medicinal da planta avança um pouco mais rápido em outra alta Corte judicial. Só neste ano, vinte cidadãos bateram à porta do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e saíram de lá com um salvo-conduto para plantar Cannabis com essa finalidade sem serem incomodados pelas autoridades. As decisões vieram de sete ministros, o que mostra o espraiamento desse entendimento no tribunal. Ele havia estabelecido um marco em 2022, quando concedeu, pela primeira vez e por unanimidade, autorização para três pessoas cultivarem a erva em casa. Esses pacientes já usavam medicamentos à base de Cannabis para câncer, insônia e ansiedade generalizada e alegaram dificuldades para importar os produtos devido ao alto custo. O avanço da Cannabis medicinal nos tribunais não ocorre apenas no STJ. Segundo estimativa da Rede Reforma, um coletivo de juristas que atua pela mudança da política de drogas, há mais de 3 000 decisões amparando o cultivo doméstico por pessoas físicas desde 2016 no país. Além disso, dez associações, de seis estados, obtiveram via judicial a permissão para plantar Cannabis para uso medicinal.
A abertura dessa trincheira jurídica nasceu com a luta de um casal por sua filha. Com pouco mais de 1 mês de vida, Sofia teve as primeiras crises epilépticas de um longo histórico de convulsões. Aos 2 anos e meio, foi diagnosticada portadora de uma deficiência do gene CDKL5, uma síndrome rara que compromete gravemente o desenvolvimento intelectual, da fala e dos movimentos. Depois de lançar mão de todas as possibilidades farmacológicas, e até de uma cirurgia, os pais, Margarete Brito e Marcos Langenbach, descobriram que uma criança com uma condição parecida se tratava com Cannabis nos Estados Unidos e tinha ótimos resultados. Eles se arriscaram importando ilegalmente o óleo de maconha, correndo o risco de serem presos por tráfico internacional de drogas, mas a ameaça perdeu importância quando testemunharam a diminuição no número de crises epilépticas da filha. O apetite, o sono e o quadro geral da menina também melhoraram. Outros pais e mães procuraram a ajuda do casal. “Havia casos de sessenta, oitenta convulsões por semana que com a Cannabis zeraram essas crises.” Em 2014, criaram a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) e, em 2016, conquistaram na Justiça o primeiro habeas corpus de plantio para fins medicinais. Em cinco anos, o cultivo no apartamento de 70 metros quadrados migrou para uma área de 37 hectares em Paty do Alferes, no Rio de Janeiro, onde se encontra hoje a maior fazenda de Cannabis do país, com 4 000 plantas, que produzem medicamentos para 7 500 associados.
A mobilização pela maconha medicinal ajudou muito a diminuir o tabu em torno da planta. Nada menos que catorze estados já aprovaram algum tipo de lei que permite a distribuição de medicamentos à base de Cannabis pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo assim, os avanços são permeados por dificuldades. Em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas, a despeito de críticas dos apoiadores bolsonaristas, sancionou em janeiro uma lei aprovada pela Assembleia e criou um grupo permanente para discussão do tema. A distribuição efetiva irá começar em breve. Em junho, foram divulgadas as primeiras três doenças que poderão ser tratadas: síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa. Os membros do grupo divergem sobre a ampliação do tratamento para outros transtornos, como o autismo. Segundo o autor do projeto, Caio França (PSB), as regras gerais já foram definidas. “Não há mais motivo para adiamento”, afirma. A Secretaria de Saúde informou que ainda estão sendo avaliados a possibilidade de ampliação da medicação a outras patologias e os critérios de distribuição e que a licitação será iniciada após essas definições. A previsão é que a medicação esteja disponível em três meses.
A procura pelo Judiciário para acesso à Cannabis se dá também por causa da omissão do Legislativo. Há pelo menos vinte projetos de lei na Câmara e no Senado engavetados pela resistência política, em especial da bancada evangélica. Um dos mais avançados, o PL 399, que permite o cultivo para fins medicinais, foi apresentado em 2015 por Fábio Mitidieri (PSD), hoje governador de Sergipe. A proposta passou por uma comissão especial, mas sua aprovação mostra o tamanho da encrenca: a votação terminou com 17 votos a favor e 17 contra e foi desempatada pelo relator, Luciano Ducci (PSB-PR). O projeto deveria ser conclusivo, ou seja, ir dali direto para o Senado, mas houve recurso para que fosse votado em plenário, o que não tem data para ocorrer. A oposição à proposta foi basicamente de cunho ideológico. “Vivemos um período de crescimento do conservadorismo no país e de muitas fake news, falta trato político para que o projeto avance”, diz Mitidieri. O grau de dificuldade para o tema tramitar no Congresso também foi dado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em discurso feito logo após a retomada do julgamento. Ele considerou a discussão no STF uma “invasão de competência do Legislativo” e disse que a descriminalização deveria vir acompanhada de uma política pública mais ampla sobre entorpecentes. “De quem se irá comprar a droga? De um traficante de drogas, que pratica um crime gravíssimo equiparado a hediondo”, afirmou.
Enquanto o tema segue travado no Legislativo, a troca de guarda no Executivo trouxe esperança de uma nova abordagem sobre o assunto. “Engraçado: maconha pode, cloroquina não pode”, afirmou o então presidente Jair Bolsonaro ao anunciar que vetaria iniciativa aprovada pelo Congresso para liberar a produção industrial de medicamentos à base de Cannabis. Já o governo Lula vem dando sinais de que é simpático à causa, apesar de alguns tropeços, como a recente decisão da Anvisa que proíbe a importação de flores de Cannabis para a produção de remédios cannábicos. A disposição progressista nessa área também será colocada à prova diante das necessidades do governo em não jogar fumaça em meio ao esforço para consolidar base de apoio num Congresso majoritariamente conservador.
Por ora, no entanto, há sinais relevantes de uma disposição pró-liberação. Com a volta do petista ao Palácio do Planalto, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) foi reformulado e elegeu dez conselheiros em junho, incluindo associações que defendem a descriminalização. Além disso, o chamado “conselhão” da Presidência aprovou a criação de um grupo para discutir uma política nacional de substâncias psicoativas. “É um aceno interessante”, diz Viviane Sedola, empresária do ramo da Cannabis e integrante do “conselhão”. Em outro gesto significativo, uma resolução recente do Conselho Nacional de Saúde colocou como uma de suas prioridades a liberação da maconha. Também está em andamento a formação de um grupo para discutir o uso industrial.
Esse é, aliás, um ponto que tende a ganhar tração nos próximos dias. Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann), mais de 25 000 produtos podem ser feitos com cânhamo (Cannabis com baixíssimo teor de THC) nas indústrias têxtil, farmacêutica, veterinária, alimentícia e na construção civil. Além disso, a planta pode ser usada na produção de papel, biocombustíveis, fertilizantes e plástico sustentável. A entidade estima que esse mercado poderia inserir 30 bilhões de dólares por ano na economia até 2030. “Se o Brasil quiser colocar a mão nesses recursos, tem de entender as questões sociais em torno da planta”, ressalta Thiago Ermano, diretor da Abicann. Atualmente, a China é a maior produtora de cânhamo do mundo. Na América Latina, o Paraguai lidera o ranking. No Brasil, não há regulamentação que permita o cultivo para fins industriais, mas um processo que tramita no STJ pode mudar isso. A empresa DNA Soluções em Biotecnologia, do Paraná, pediu à Justiça esse tipo de autorização. Em março, a ministra Regina Helena Costa suspendeu todos os processos sobre o tema e deu a essa ação o chamado “incidente de assunção de competência”. Assim, o julgamento pode criar jurisprudência e abrir espaço para que outras empresas consigam o mesmo direito.
A história da maconha no Brasil é antiga, mas nem sempre foi ilegal. Estudiosos afirmam que a erva foi trazida ao país pelos escravos africanos. Em 1938, Getúlio Vargas publicou decreto-lei que classificou a Cannabis como entorpecente e proibiu o plantio, o cultivo, a colheita e a exploração. Durante a ditadura, um decreto-lei modificou o Código Penal para equiparar o usuário ao traficante. A Lei Antidrogas sancionada em 2006 por Lula, por sua vez, estabeleceu de vez a confusão ao não especificar os critérios para diferenciar usuário e traficante, o que deixa a decisão para cada autoridade. “Antes se prendia o usuário, ele tinha uma sanção privativa de liberdade, mas que permitia a substituição por penas alternativas. A partir da nova lei, com a mesma quantidade, esse passou a ser, inúmeras vezes, classificado como pequeno traficante”, lembrou Moraes em seu voto — ele defende um parâmetro de até 60 gramas para classificar uso pessoal. Segundo o Ministério da Justiça, 28% da população carcerária está presa por crimes previstos nessa lei. Um estudo do Ipea revelou que 59% dos réus por tráfico portavam até 150 gramas. “Essa lei criou o encarceramento em massa”, afirma Gabriella Arima, diretora da Rede Reforma.
Caso a política pró-liberação avance por aqui, o Brasil ficará mais alinhado com o restante do mundo a respeito desse assunto. Segundo a BDSA (associação americana da indústria de Cannabis), o setor deve arrecadar 36,7 bilhões de dólares só neste ano, com 80% das vendas provenientes dos Estados Unidos. Na Europa, vários países lucram com os usos medicinal e industrial, e a Alemanha está em vias de liberar o consumo recreativo. Mesmo em nações mais conservadoras, como Portugal, o uso acabou sendo flexibilizado. Na América Latina, a Argentina pretende gerar 10 000 novos empregos, faturar 500 milhões de dólares em vendas domésticas e 50 milhões de dólares em exportações por ano. A Colômbia permite o cultivo para fins medicinais e o porte de até 20 gramas para consumo. “Precisamos observar o mundo”, diz Rodrigo Mesquita, vice-presidente da Comissão Especial de Direito da Cannabis da OAB Nacional.
Evidentemente, o caminho da legalização não implica ignorar problemas de saúde provocados pelo consumo recreativo da droga e tampouco abrir espaço para prescrições terapêuticas sem amparo em pesquisas científicas. Mas é alvissareiro, após anos de debate ofuscado por questões ideológicas, religiosas ou morais, o fato de o Brasil caminhar na direção certa, com suas instituições, em ritmos variados, debruçando-se sobre o tema como deve ser: com viés técnico, levando em conta o que é interesse do cidadão, da sociedade e do país, sem os tabus e equívocos do passado.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853