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Sorteios de armas avançam no rastro da política belicista de Bolsonaro

Ilegal, a prática se torna cada vez mais comum em redes sociais como o Facebook ou aplicativos de mensagens como o Telegram e o WhatsApp

Por Victoria Bechara 25 set 2022, 08h00

A igreja evangélica Povo da Cruz, no Espírito Santo, anunciou em maio deste ano uma rifa com o objetivo de arrecadar fundos para investir na construção do seu “ministério infantil”. Como prêmio, o fiel mais sortudo levaria uma espingarda calibre 12 para casa. A alegação para entregar uma arma a um “servo de Deus” estava na ponta da língua do pastor Dinho Souza: “Não temos problema com isso porque o armamento é para o cidadão de bem”, afirmou. Pode até ser, mas a prática é ilegal. Sorteios e promoções comerciais com armas e munições como brindes são proibidos pelo decreto 70 951, de agosto de 1972, e por uma portaria do Ministério da Economia publicada em 2020. Isso não tem impedido, no entanto, que a prática se torne cada vez mais comum, principalmente por parte de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) e clubes de tiro em redes sociais como o Facebook ou aplicativos de mensagens como o Telegram e o WhatsApp.

Ao longo das últimas semanas, a reportagem de VEJA localizou dezenas de perfis empenhados na divulgação desse tipo de expediente. “O sócio precisa indicar uma pessoa para se filiar ao clube e ganha um cupom por indicação que fechar a filiação”, dizem as regras de um sorteio do M4 Clube e Escola de Tiro, no Rio de Janeiro. O prêmio: uma pistola Glock 9mm. Na maioria dos casos, o regulamento especifica que o brinde só será entregue caso o ganhador cumpra os requisitos previstos pela lei, mas há rifas em que a participação de qualquer pessoa é permitida e até o sorteio de armas sem documentação. “A rifa e a transferência dessa arma para alguém incerto, mesmo que depois tenha de cumprir os requisitos para recebê-la, são uma maneira de ferir a lei”, explica Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Uma busca rápida pela internet mostra que há variados perfis envolvidos com a prática. Alguns de forma mais eventual, como um grupo de guardas civis de Goiânia que lançou o sorteio de uma pistola Glock para arrecadar dinheiro para a formatura. O Ministério Público interveio, e os formandos foram obrigados a trocar o prêmio por dinheiro. Mas há também perfis que se especializaram nesse tipo de atividade, um sintoma da falta de fiscalização, que deveria ser feita pelo Exército. No site sorteioarmas.com.br, por exemplo, o participante paga 15 reais, escolhe o número e concorre a cinco prêmios: uma pistola Glock 9mm, uma espingarda CBC calibre 12, uma pistola Taurus G2C 9mm, um rifle CBC .22 e um rifle CBC semiautomático .22.

O domínio do site foi registrado por José Figueiredo Barreto, o “Instrutor Figueiredo”, candidato a deputado estadual em Sergipe pelo Republicanos, um dos partidos da coligação do presidente Jair Bolsonaro (PL). A VEJA ele disse que o próximo sorteio será em 1º de outubro, um dia antes da eleição, e ressaltou que as armas são registradas legalmente, cedidas por lojas. Após algumas perguntas, ele recuou e disse que não faz mais parte da empresa. O Fale Conosco do site, no entanto, leva ao seu WhatsApp. “É um outro nível de sofisticação dessa prática, montar uma casa de sorteio virtual com distribuição de prêmios vedados pela legislação”, afirma Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz.

arte armas

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Além de ilegais, essas premiações são uma espécie de roleta-russa. Sem a fiscalização adequada, nada garante que o ganhador e o promotor do sorteio seguirão as regras estabelecidas pela legislação para o registro ou transferência do armamento. “Eles só fazem essas coisas porque têm certeza de que a fiscalização é falha. O Exército não tem feito nem o básico, que é saber quais armas estão em qual lugar”, diz Roberto Uchôa, policial federal, especialista em gestão de segurança pública e Justiça criminal da UFF e autor do livro Armas para Quem?.

As conexões desse fenômeno com o bolsonarismo são grandes. O “Instrutor Figueiredo” é apoiado pelo ProArmas, o maior grupo armamentista do país. Fundada por Marcos Pollon (PL), candidato a deputado federal por Mato Grosso do Sul, a entidade quer eleger a “bancada dos CACs” no Congresso. Pollon já foi alvo de uma notícia-crime no Ministério Público Federal por um sorteio ilegal, em julho. Para driblar a fiscalização, anunciou em uma live que o prêmio seria uma “furadeira” — termo usado para se referir a armas curtas. Muitas vezes os sorteios são chamados de “concursos culturais”. O apoio a Bolsonaro é praticamente uma regra entre CACs e grupos pró-­armas. Clubes de tiro fizeram rifas para pagar ônibus que levaram filiados a Brasília para o ato bolsonarista de 7 de setembro. O “patriota” premiado ganhou uma pistola ou uma caixa de munição.

A onda de sorteios vem na esteira da flexibilização legal promovida pelo governo, que elevou o número de armas permitidas aos cidadãos. Só para os CACs, as mudanças possibilitaram a quem tem registro de atirador comprar até sessenta armas, sendo trinta de uso restrito, como fuzis (antes, os limites eram de dezesseis e oito, respectivamente). O aumento da quantidade de cidadãos desse tipo armados é assustador: foi de 117 000 em 2018 para 674 000 neste ano. A política abre as portas para a circulação de armas sem controle algum. Na última semana, um professor, que é CAC, foi flagrado com uma arma de fogo em uma escola de Suzano (SP) — a arma caiu quando ele jogava vôlei com alunos. O docente foi afastado pelo governador Rodrigo Garcia (PSDB). Uma reação a Bolsonaro veio do STF nesta semana, quando os ministros formaram maioria para sustar decretos do governo que flexibilizam as regras para armas e munições. Apesar do revés recente no Supremo, adquirir uma arma ficou mais fácil e mais rápido no país. Em alguns casos, 10 reais e um pouco de sorte já são suficientes.

Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808

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