Desde que foi eleita com a atual composição, a Câmara dos Deputados, a mais conservadora desde a redemocratização, não tem poupado esforços para impor uma agenda de costumes em franca oposição às bandeiras progressistas e, muitas vezes, ao bom senso. A dissonância atingiu nível de alta estridência nos últimos dias, a partir de uma manobra furtiva do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que deu caráter de urgência — votação imediata em plenário, sem passar pelo crivo de comissões — a uma aberração: o Projeto de Lei 1904, que equipara o aborto após 22 semanas de gestação a homicídio e impõe penas correspondentes à grávida que opte pelo procedimento.
A limitação adicional a um procedimento já extremamente restrito, em um primeiro momento, avançou graças à sustentação da bancada evangélica, ao oportunismo de Lira e à apatia do governo do PT, até topar com o muro de indignação da sociedade. Depois de muito barulho, a proposta não foi retirada da pauta, mas sua discussão acabou adiada. Radical, o projeto do pastor Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), ex-dirigente da bancada evangélica na Casa, não poupa nenhum dos três casos em que o aborto é permitido por lei — anencefalia do feto, risco de morte da mãe e gravidez decorrente de estupro, sendo que neste último a pena de prisão da vítima violentada superaria a de seu agressor.
A reação não demorou. “Fora Lira”, gritaram milhares de mulheres em protestos que tomaram as ruas de diversas capitais. Os celulares dos parlamentares do PL foram inundados de mensagens de repúdio ao partido “que protege o estuprador”, um movimento que transbordou ideologias e tomou de surpresa a ala da direita. Diante da tormenta, o presidente da Câmara, com apoio de praticamente todos os líderes, anunciou que a tramitação do tema ficará para o segundo semestre e instalou uma comissão representativa para analisar a questão. “Nada que traga dano às mulheres avançará”, garantiu, sem dizer como pretende superar a evidente contradição.
Nos últimos anos, a direita radical, no Brasil e no resto do mundo, se organizou e abriu espaço para a revisão de políticas públicas com as quais não concorda. Sóstenes apresentou seu projeto em maio, no momento exato em que Lira empreendia um dos usuais cabos de guerra com o governo e, ao mesmo tempo, costurava apoios à candidatura de seu aliado, o deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA), à presidência da Câmara no ano que vem. Conversa daqui, conversa dali, e o PL 1904 furou a fila. “Quem faz o primeiro gol sai na frente”, diz o pastor Marco Feliciano (PL-SP). “Seremos intransigentes na defesa da vida desde a concepção.”
O episódio serviu para mostrar que as investidas contra conquistas que já estão consolidadas em países avançados, aí incluído o direito ao aborto, têm seus limites até em uma sociedade conservadora como a brasileira. Pesquisa Quaest realizada em dezembro do ano passado mostrou que 72% da população é contra a legalização do aborto, mas uma porcentagem ainda maior — 84% — se opõe à prisão da mulher que decide interromper a gestação. Tentando se equilibrar nessa linha fina, os articuladores do Planalto na Câmara deixaram a votação do regime de urgência acontecer e ainda pressionaram para que ela não fosse nominal — tudo para não pregar em seus candidatos o rótulo de “abortistas”. “O governo prioriza a pauta econômica e deixa livre o caminho para a direita”, afirma Sâmia Bomfim (PSOL-SP). Depois da vasta repercussão negativa, o presidente Lula rompeu o silêncio — de forma positiva, embora atabalhoada, mas rompeu. “É crime hediondo um cidadão estuprar uma menina e querer que ela tenha o filho de um monstro”, afirmou. E adicionou, embaralhando repulsas: “Que monstro vai sair do ventre dessa menina?”.
O direito de não dar à luz o filho de seu estuprador está previsto no Código Penal desde 1940 — na ocasião, uma decisão mais relacionada à resistência de maridos e pais de assumir a criança do que ao direito de escolha da mulher — e não prevê prazo para a realização do procedimento. O marco das 22 semanas advém da constatação científica de que desse ponto da gravidez em diante o feto adquire condições de sobreviver fora do útero. O aborto então exige providência drástica: como o feto abortado não pode nascer vivo, recorre-se à assistolia fetal, técnica que consiste na injeção de cloreto de sódio diretamente no coração, que para de bater instantaneamente. Estudos revelam que, até o nascimento, o feto não é capaz de sentir dor, mas o procedimento é de difícil assimilação — um dilema que não existiria se as meninas submetidas a violência sexual não passassem por um calvário que se prolonga por vários meses.
Calcula-se que 116 pessoas do sexo feminino sejam estupradas no Brasil a cada dia e 60% delas são menores de 13 anos. Nessa faixa de idade, a consciência da gravidez costuma ser tardia. “É um mecanismo de defesa. Elas tentam esquecer, fazer de conta que nada aconteceu e demoram muito a procurar atendimento”, diz a psicóloga Daniela Pedroso, que atuou por 26 anos no serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo. Virgínia (nome fictício) tinha 14 anos quando começou a ser abusada pelo marido de sua avó. Diante da ameaça dele de matar a avó caso ela deixasse de comparecer aos encontros, permaneceu em silêncio durante meses. Quando criou coragem e contou à mãe, estava grávida de 29 semanas. A escolha pelo aborto foi imediata, mas as três tentativas de realizar o procedimento no Hospital da Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, deram errado. “Primeiro, disseram que a médica não poderia ir, depois, que iriam chamar um profissional de fora e, por fim, que a interrupção estava proibida”, conta a mãe de Virgínia. A solução foi viajar até Salvador, onde finalmente a adolescente foi atendida. “Se ela não tivesse feito o aborto, sua vida estaria destruída”, afirma.
Um dos motivos da confusão nesse caso foi a ação dos chamados grupos pró-vida que, no governo de Jair Bolsonaro, conseguiram que o Ministério da Saúde emitisse uma nota técnica — sem força de lei — vetando abortos tardios. Pressionada por profissionais da saúde e pela base progressista, a gestão da atual ministra, Nísia Trindade, cancelou a portaria. Para evitar equívocos, tentou substituí-la por outra norma, restabelecendo as condições do aborto legalizado no país, mas foi obrigada a recuar diante da forte reação conservadora. A peleja voltou a esquentar em março, quando o Conselho Federal de Medicina, entidade alinhada ao bolsonarismo, baixou uma norma interna que vedava o aborto após 22 semanas de gestação. Ela foi suspensa por uma liminar expedida pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, em maio — mesmo mês em que o deputado Sóstenes apresentou seu projeto de transformar vítimas em criminosas.
Para quem está na linha de frente, do atendimento, a briga em torno de uma lei estabelecida resulta em grande insegurança. “Está tudo muito confuso. Se fizer um aborto depois desse prazo gestacional, sei que assumo o risco de perder a licença e muitos de meus colegas não vão me apoiar”, diz Claudia Garcia Magalhães, professora da Ginecologia da Faculdade de Medicina da Unesp. Os profissionais da saúde ouvidos por VEJA relatam um aumento significativo de medidas contra os serviços públicos de abortamento. O Cachoeirinha, primeiro hospital a realizar procedimentos previstos em lei, em 1989, deixou de ser referência na rede depois que a gestão do prefeito paulistano, Ricardo Nunes, decidiu suspender o atendimento, no fim do ano passado. Ainda em São Paulo, duas médicas que realizavam abortos com base na lei tiveram o CRM suspenso por não respeitarem o prazo de 22 semanas. “Estamos vivendo uma ideologização muito perigosa”, alerta Ivete Boulos, que há 26 anos atua no serviço do Hospital das Clínicas em São Paulo.
As dificuldades impostas pelo sistema têm reflexo direto na vida de garotas que se veem obrigadas a criar filhos que não escolheram ter. “Um médico disse: ‘Você estragou sua vida’”, relata Yara Alves Gomes, 32 anos (leia o depoimento abaixo). Rosa (nome fictício), 31, foi estuprada aos 14 anos, quando voltava da escola, e, com medo, só contou à mãe que tinha sido atacada e estava grávida na 25ª semana de gestação. Os médicos que a atenderam disseram que havia risco na interrupção, e sua mãe se recusou a autorizar o procedimento. “Não tinha amor pelo que levava na barriga, sentia nojo”, conta Rosa. “Tentei suicídio oito vezes. Só consegui dar algum carinho e dizer que amava meu filho quando ele já tinha 13 anos.”
Quem atua na área ressalta o óbvio: com prevenção e informação adequadas, o número de meninas grávidas de seus agressores seria muito menor. “Criou-se a ideia de que as equipes querem fazer aborto a qualquer custo, mas estamos trabalhando no acolhimento das vítimas. Tudo é feito com muito critério”, explica Sylmara Berger, que trabalha na elaboração de um protocolo de atendimento no estado de São Paulo.
Atropelado pela maré de populismo direitista que varre o Ocidente, o direito ao aborto sofreu retrocessos nos últimos tempos — sendo o mais bombástico deles nos Estados Unidos. Ali, em 2022, a Suprema Corte anulou a decisão que há meio século liberava o procedimento em todo o país, transferindo a decisão para os estados. Por outro lado, houve avanços significativos na católica e conservadora América Latina, onde Argentina, Colômbia, Chile e México, entre outros, legalizaram a interrupção da gravidez, seguindo o caminho adotado há décadas pelos países europeus. A França, que contabiliza menos de uma morte por ano em decorrência de intervenções legalizadas (no Brasil, o número estimado é 59), o direito da mulher a interromper a gravidez foi cimentado na Constituição. O presidente Emmanuel Macron tentou levar o tema para o G7, o clube das principais nações mundiais, no encontro deste mês na Itália, mas encontrou resistência dos colegas alinhados à direita. No Brasil, onde o assunto, entra governo, sai governo, segue sendo tabu, espera-se que ao menos os parcos direitos adquiridos sejam mantidos, bem como a esgarçada tela de proteção às vítimas de violência sexual. Basta de desrespeito.
“Eu era uma criança tentando ser mãe”
“Não tinha idade para namorar quando me aproximei de um homem mais velho. Eu com 12 anos e ele com 22, num relacionamento desigual em que o sexo era obrigação. Hoje, sei que essa situação configura estupro de vulnerável, mas, na época, não entendia direito o que estava acontecendo e fui me deixando levar. Até que, um dia, soube que estava grávida. Descobri a gestação por volta dos quatro meses e, por vergonha e medo, escondi. Meus pais só entenderam a situação quando o bebê estava prestes a nascer. Fui a um hospital público de São Paulo para uma consulta e me maltrataram, me culpando pela gestação. Ouvi do médico: ‘Você estragou sua vida’. Ninguém me informou que abortar seria uma opção. Se soubesse, teria interrompido a gravidez. Meus direitos foram omitidos. Dar à luz foi uma experiência estranha, eu era uma menina tentando ser mãe. Tive depressão pós-parto e fui diagnosticada com transtorno borderline. Hoje, me revolta saber que o pai do meu filho nunca foi condenado como estuprador. O juiz que analisou o caso disse que a relação havia sido consentida. Me formei em direito e não concordo com essa decisão. Espero que, ao contar minha história, casos como o meu não se repitam.”
Yara Alves Gomes, 32 anos
Depoimento a Ligia Moraes
Colaborou Ludmilla de Lima
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898