Se fosse preciso fazer um catálogo das evidências que ajudam a piorar ainda mais a imagem do Brasil no exterior em relação aos cuidados ambientais, os últimos dias trariam os registros mais contundentes e avassaladores. As cenas de fogo no Pantanal se espalharam pelo mundo todo, sublinhando, uma vez mais, o pouco-caso das autoridades na lida com a natureza. Depois de os estados de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul declararem estado de emergência, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi obrigado a reconhecer: “o incêndio no Pantanal tomou proporção gigantesca”. Cerca de 15% da região foi devastada pelas labaredas, há 15 000 focos de incêndio, ante 5 000 anotados no ano passado. Em nove meses, de janeiro a setembro de 2020 na comparação com 2019, o salto foi de tristes 210% de áreas incendiadas — e, no entanto, as multas relacionadas a maus-tratos com o campo, por fogo ateado onde deveria haver proteção, caíram mais de 20% no período.
A frieza estatística, agora traduzida nas cores amarelo-fogo e na cara de espanto dos animais, começa também a ser aferida de outro modo, econômico — e, quando a conta chega para a engrenagem do agronegócio brasileiro, é indício de pressão multiplicada. Na terça-feira 15, o vice-presidente Hamilton Mourão recebeu uma carta assinada pelos embaixadores de oito países europeus — Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Holanda, Noruega, Dinamarca e Bélgica. O recado não poderia ser mais claro: “a tendência crescente de desflorestamento no Brasil está tornando cada vez mais difícil para empresas e investidores (da Europa) atenderem a seus critérios ambientais, sociais e de governança”. Convém não considerar o documento como peça do jogo diplomático, um balé tenso que muitas vezes não dá em nada. O descaso ambiental realmente começa a custar caro. No primeiro semestre de 2020, o Brasil perdeu algo em torno de 38 bilhões de dólares em investimentos externos de fundos que só põem dinheiro em países que respeitem, clara e nitidamente, as normas de cuidados ambientais. Sem isso, nada feito. Atentos a esse recuo, montou-se, a toque de caixa, a Coalizão Brasil Clima, Bosques e Agricultura, agrupamento de 200 organizações, entre ONGs, empresas de agronegócio e do setor financeiro e alimentício. Há no grupo indústrias como JBS, Marfrig, Basf e Bayer. Faz-se um pedido, que também chegou às mãos do governo: mais transparência e fiscalizações nas florestas. Sem essa postura, muitos negócios serão inevitavelmente desfeitos.
O governo reage, mas reage mal. O vice-presidente Hamilton Mourão tratou de encontrar um inimigo imaginário. Sugeriu que “alguém” de oposição no Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, que mede as queimadas, estaria jogando contra. “Quando o dado é negativo, o cara vai lá e divulga; quando é positivo, não divulga”, disse Mourão. Ele se esquece de que as informações do Inpe são públicas, de fácil acesso, atualizadas diariamente, e brigar com os fatos é pura tolice. Aos fatos: foram identificados 133 974 focos de incêndio acumulados no país entre 1º de janeiro e 14 de setembro, aumento de 13% em relação ao ano passado. Apenas na Amazônia, se a comparação for entre setembro de 2020 e setembro de 2019, houve aumento de 86% de pontos com fogo. E então, como se não bastassem as campanhas internacionais organizadas por ONGs muito influentes e artistas de renome, como Leonardo DiCaprio, veio o Pantanal — que já ardia havia um mês, e que contumazes exercícios de tapar o sol com a peneira não foram aceitos como resposta.
As queimadas controladas são comuns no cerrado e em vastas regiões amazônicas — servem, sobretudo nesta época do ano, de estiagem, para eliminar o mato seco, que funciona de combustível e alastra as chamas. Não é disso que se trata, agora. Há a mão devastadora e incontrolada do homem, de produtores que pretendem abrir pastos na marra, acelerando os ciclos naturais. Some-se a irresponsabilidade com a seca prolongada em demasia — neste ano mais aguçada do que em outros —, e dá-se o atual drama. Nem é preciso, contudo, apelar para dados estatísticos de modo a medir o tamanho da tragédia — têm girado o mundo, inapelavelmente, fotos de animais em fuga, intoxicados, mortos. Nesse terreno, o capítulo de maior repercussão foi a devastação de 85% do Parque Estadual Encontro das Águas, perto de Poconé, em Mato Grosso, refúgio de onças-pintadas, atrativo incontornável para turistas de todo o planeta. Convém ressaltar que o fogo pantaneiro não é filme novo, embora os descalabros da política ambiental de Bolsonaro tenham feito tudo ficar mais feio. Na semana passada, o WWF, o Fundo Mundial para a Vida Selvagem e Natureza, divulgou um levantamento sobre a queda da população de mamíferos, aves, anfíbios, répteis e peixes entre 1970 e 2016 — não chega, portanto, a 2020. O estudo, chamado de Planeta Vivo, mostrou redução, nesse período, em todo o mundo, de 68% da fauna. Na América Latina e Caribe o encolhimento foi de 94%.
O estrago, evidente nas fotografias e assustador quando se medem as curvas matemáticas, é resultado da agricultura sem zelo pela sustentabilidade, sinônimo de desmatamento desenfreado, e comércio ilegal de animais selvagens. “A humanidade precisa, urgentemente, rever sua relação com a natureza”, disse a VEJA Mariana Napolitano, gerente do Programa de Ciência do WWF-Brasil. E onde haveria espaço para as bases de uma nova economia brota devastação. Há saída? Sim. Ao divulgar o relatório, o WWF anexou um levantamento publicado na revista Nature segundo o qual uma mudança no modo de a humanidade consumir alimentos pode inverter a tendência, evitando ataques desnecessários à fauna e à flora. O nome do jogo: responsabilidade. Para enxergá-la, contudo, será preciso antes tirar da frente a fumaça do fogo no Pantanal — que, por uma conjunção de fatores climáticos, com ventos fortes e pouca chuva, ameaçava descer para o Rio de Janeiro e São Paulo. Mas já incomoda o mundo.
Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705