Os detalhes da operação que prendeu suspeitos de invadir celulares
Polícia Federal investiga o acesso ilegal a telefones de autoridades do governo, entre eles o do ministro Sergio Moro e o do presidente Jair Bolsonaro
A Polícia Federal acredita ter puxado o fio da meada que pode levar à descoberta de uma organização criminosa especializada em invadir celulares e capturar informações em aplicativos de mensagens. No último dia 23, três homens e uma mulher foram presos no primeiro desdobramento da Operação Spoofing, que investiga o acesso ilegal a telefones de autoridades do governo, entre eles o do ministro da Justiça, Sergio Moro. Dois suspeitos estavam no interior de São Paulo e os demais na capital. Na casa deles, os agentes apreenderam computadores com dezenas de pastas contendo arquivos de prováveis vítimas, dinheiro em espécie e documentos que não deixam dúvidas sobre a natureza criminosa e um tanto mambembe do grupo. As investigações mostraram que Walter Delgatti Neto, Danilo Cristiano Marques, Gustavo Henrique Elias Santos e Suelen Priscila de Oliveira teriam invadido — através de um golpe simples (leia o quadro) — o celular de Sergio Moro e de pelo menos outras 1 000 pessoas, incluindo o presidente Jair Bolsonaro, a deputada Joice Hasselmann, líder do governo no Congresso, e o ministro da Economia, Paulo Guedes (neste caso, o ataque foi revelado por VEJA, depois que o número do ministro fez contato com o editor Thiago Bronzatto). O caso vem sendo tratado com o máximo de sigilo, já que a confirmação da captura de conversas do presidente da República, se de fato ocorreu, configuraria um grave crime contra a segurança nacional. “Não estou nem um pouco preocupado se, por ventura, algo vazar aqui do meu telefone. Não vão encontrar nada que comprometa”, minimizou Bolsonaro. Deve ser por isso que o grupo não vazou nem uma linha sobre o presidente.
A operação contra o grupo foi autorizada pelo juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara Federal de Brasília. O magistrado decretou a prisão temporária de cinco dias dos quatro suspeitos, bloqueou quaisquer valores deles acima de 1 000 reais e determinou a quebra do sigilo bancário para apurar se existem patrocinadores das invasões ilegais. Entre os quatro alvos da Operação Spoofing, o que apresenta a biografia mais complicada é Walter Delgatti Neto, 30 anos, de Araraquara (SP). Conhecido como “Vermelho” por causa do cabelo e barba ruivos, Delgatti ostenta uma ficha com seis processos na Justiça paulista por crimes de estelionato, furto qualificado e apropriação indébita, nos quais acumula duas condenações. Estelionatário clássico, de estilo fanfarrão, ele já foi flagrado também andando com documentos falsificados, a exemplo de uma carteira de estudante de medicina da USP e uma de delegado da Polícia Civil de São Paulo, que Vermelho dizia usar para “pegar a mulherada”. Em sua conta no Facebook, tinha fotos com um “leque” de ao menos vinte notas de 100 dólares e com um fuzil em um clube de tiro nos Estados Unidos. Em uma das vezes em que acabou detido, disse que era investidor e tinha uma conta na Suíça.
Poucos dias antes de ser preso pela PF, dirigia um Land Rover branco pelas ruas de Ribeirão Preto, onde passou a viver. A bordo do carrão, deixou pendurada em um posto de gasolina da cidade uma fatura de 200 reais. Alegou ao frentista que o cartão de crédito não estava funcionando. Nunca mais voltou. Dizia cursar por lá a faculdade de direito em tempo integral na Unaerp, motivo pelo qual não lhe sobrava tempo para trabalhar. Ele realmente estudou no local, mas sua matrícula está inativa. E não há curso de direito em tempo integral na instituição. O advogado Luiz Gustavo Delgado, que representa Walter Delgatti Neto nas acusações da Operação Spoofing, afirmou que ele tem problemas psiquiátricos. Na quarta-feira 24, o defensor levou comida, um cobertor e remédios de uso controlado para seu cliente, detido na Superintendência da Polícia Federal em Brasília. Segundo o advogado, Vermelho prestou depoimento na terça-feira acompanhado por um defensor público. “Ele está atordoado.”
Outro dos detidos pela PF, Gustavo Henrique, um ex-DJ, já foi preso por receptação de carros roubados e porte ilegal de arma. Ele foi capturado na capital paulista com sua namorada, Suelen. No local, a polícia encontrou 100 000 reais em dinheiro vivo. As contas bancárias do casal movimentaram cerca de 600 000 reais, valor incompatível com a renda declarada do casal. Essas informações levantaram a suspeita de que pode haver um financiador por trás das atividades criminosas da turma — o que eles negam. De acordo com o advogado Ariovaldo Moreira, que defende Gustavo e Suelen, o ex-DJ de Araraquara disse em seu depoimento à PF que Walter Delgatti mostrou a ele, em duas ocasiões, mensagens dos celulares de autoridades, entre as quais o ministro Sergio Moro. Delgatti se vangloriava do feito. Na primeira vez, Santos duvidou, mas na segunda, quando o amigo exibiu a imagem da tela de seu computador com ícones do Telegram correspondentes às mensagens, ele passou a acreditar, alertando Delgatti de que aquilo poderia “dar problema”. À PF, Gustavo afirmou que Walter Delgatti, embora filiado ao DEM, tinha simpatia pelo PT e pretendia vender os dados hackeados ao partido. Em nota, o PT disse que “é criminosa a tentativa de envolver o partido num caso em que é Moro que tem de se explicar”. Sobre o dinheiro encontrado na sua casa e os valores movimentados na conta do casal, Gustavo Santos alegou que são fruto de investimentos no mercado de bitcoin e que teria como comprová-los.
Logo após as prisões, o ministro da Justiça insinuou, em sua conta no Twitter, que os quatro hackers estariam envolvidos na captura ilegal de mensagens trocadas entre ele e os procuradores da Operação Lava-Jato. Essas mensagens, obtidas pelo site The Intercept Brasil, mostraram o então juiz Sergio Moro orientando procuradores sobre estratégias de investigação, coleta de provas e tomada de depoimentos em processos — comportamento incompatível com a imparcialidade exigida de um magistrado. Em parceria com o Intercept, que concedeu acesso ao material, VEJA e o jornal Folha de S.Paulo também publicaram reportagens sobre o conteúdo comprometedor dos diálogos. VEJA reafirma que divulgou apenas as mensagens que considerou de interesse público, depois de um rigoroso trabalho de reportagem e checagem. “Parabenizo a Polícia Federal pela investigação do grupo de hackers, assim como o MPF e a Justiça Federal. Pessoas com antecedentes criminais, envolvidas em várias espécies de crimes. Elas, a fonte de confiança daqueles que divulgaram as supostas mensagens obtidas por crime”, disse o ministro. Moro vem negando a autenticidade dos diálogos e sempre destacou que o caso se resume a uma invasão ilegal de privacidade. As duas partes da história, porém, são independentes. Ou seja, Moro está numa posição curiosa: ele pode ter sido vítima de uma invasão ilegal e essa mesma investigação comprovar que o conteúdo das mensagens é verdadeiro, confirmando um comportamento inadequado a um magistrado.
Segundo um investigador da Operação Spoofing ouvido por VEJA, o 171 Delgatti confessou ter invadido o celular do ministro Sergio Moro e do procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava-Jato, e capturado as conversas que foram entregues ao site Intercept. As declarações foram dadas na presença de um defensor público. Delgatti, no entanto, trocou de advogado no dia seguinte. O novo defensor, Luiz Gustavo Delgado, limitou-se a afirmar que seu cliente usa remédios controlados e que não iria confirmar nem desmentir se Delgatti realmente havia admitido o crime. O quarto preso na operação, o motorista de aplicativo Danilo Cristiano Marques, também negou, em depoimento à PF, envolvimento no ataque ao celular do ministro Moro. Marques, de 33 anos, foi colocado no rol de suspeitos porque um dos IPs usados pelos invasores estava registrado no endereço onde ele mora.
Em seu depoimento, Delgatti disse que os contatos com Greenwald foram virtuais, somente pelo aplicativo de conversas Telegram, e ocorreram depois que os ataques aos celulares das autoridades já tinham sido efetuados. O preso teria dito ainda que não pediu nenhum dinheiro para entregar o material ao jornalista. Greenwald conta ter obtido as informações de uma fonte que lhe foi apresentada por um intermediário. O jornalista mantém sob sigilo o nome desse intermediário e não faz comentários sobre a identidade da fonte. “Minha preocupação maior foi saber se o conteúdo era verdadeiro”, explica. Os contatos entre Greenwald e a fonte foram sempre virtuais — o que confere com a versão de Vermelho. O primeiro dos contatos ocorreu no início de maio, e o jornalista mantém todos os registros das conversas, ocorridas em chats do Telegram. “Não sei se a fonte pagou por esses dados. Ela não me pediu dinheiro algum em troca desse conteúdo”, afirma. Nessas conversas, às quais VEJA teve acesso, a fonte de Greenwald se expressa em um português correto e demonstra ter alguma familiaridade com termos jurídicos, usando expressões como “prisão preventiva” e “sentença transitada em julgado”. Devido ao volume do material, que continha 650 000 conversas, o envio do conteúdo ocorreu em partes, ao longo de cinco dias.
Em 5 de junho, a pedido de Sergio Moro, a Polícia Federal abriu investigação sobre uma tentativa de invasão do seu Telegram. Ou seja, de acordo com Greenwald, a denúncia relacionada ao ministro da Justiça ocorreu um mês depois de o jornalista ter recebido os diálogos da Lava-Jato. “A fonte me disse também que o conteúdo que chegou até mim foi extraído do Telegram de Deltan Dallagnol”, afirma. No mesmo dia em que a PF iniciou a investigação sobre a tentativa de invasão do Telegram de Moro, Greenwald conversou com essa fonte, que negou ter envolvimento com o caso relacionado ao ministro da Justiça. “Posso garantir que não fomos nós”, escreveu a fonte. “Nós não somos ‘hackers newbies’ (novatos), a notícia não condiz com nosso modo de operar, nós acessamos telegrama com a finalidade de extrair conversas e fazer justiça, trazendo a verdade para o povo.” Greenwald garante que não vai mudar sua rotina após a prisão dos suspeitos pela Polícia Federal. “Tenho filhos e marido brasileiros, não vou sair do país e vou continuar fazendo o meu trabalho. Ainda vamos divulgar mais coisas sobre a Lava-Jato”, afirma. “Espero que a Polícia Federal, comandada por Moro, tenha autonomia para conduzir uma investigação isenta, investigação essa que interessa diretamente ao ministro Moro”, conclui.
A PF, que garantiu que 1 000 números foram alvos de hackers, agora trabalha para confirmar as suspeitas que pairam sobre os quatro presos. Se Delgatti for mesmo a fonte dos diálogos entregues ao Intercept, será uma oportunidade também para confirmar de forma oficial a autenticidade desse material. Apesar das negativas do ministro e de outras autoridades que aparecem nos chats, as mensagens e situações divulgadas são verdadeiras — e tornam evidentes desvios de conduta do ex-juiz e de membros da força-tarefa durante as investigações. “O conteúdo mostra Moro agindo de forma claramente irregular, e isso não pode ser esquecido”, afirma um ministro do Supremo Tribunal Federal. Afinal, a Justiça serve para hackers — e também para autoridades que andaram fora da linha. Cada um com sua punição.
Com reportagem de Laryssa Borges, Leandro Resende, Fernando Molica, André Lopes, Edoardo Ghirotto, Eduardo Gonçalves, Jennifer Ann Thomas e Luiz Castro
Publicado em VEJA de 31 de julho de 2019, edição nº 2645