A primeira e desanimadora sensação que se colhe da leitura do novo volume dos Diários da Presidência, de Fernando Henrique Cardoso, é — pobre Brasil! — de quanto as coisas andam devagar, quando andam, no país. O volume, o terceiro da série, cobre os anos de 1999 e 2000. E o que se discutia no período? Reforma da Previdência, reforma tributária. “Toda vez que se fala em aumentar o tempo de trabalho (…) as pessoas reagem fortemente”, registra o presidente, em agosto de 1999. A reforma tributária ameaça provocar um emaranhado de conflitos: “Estamos entrando numa encalacrada”. Também há as sempiternas disputas entre a mal chamada “base aliada”: “São sempre problemas de menor escala, nomeaçãozinha de terceiro escalão, mas eles transformam num grande problema”. Para enfrentar a criminalidade, cogitou-se, como agora e como sempre, da criação de um Ministério da Segurança Pública; como agora, e com o mesmo nome, lançou-se um Plano Nacional de Segurança Pública. E não faltava o desafio gigante de lidar com as estatais: “Falei também, à parte, com o Philippe, acho que está na hora de mexer mais duramente em alguns diretores da Petrobras” [Philippe Reichstul era o presidente da empresa].
Os Diários resultam de gravações efetuadas por Fernando Henrique com escrupulosa regularidade, sozinhos ele e o gravador, em horas mortas no Palácio da Alvorada, na residência em São Paulo, na casa de campo de Ibiúna, na fazenda que possuía em Buritis (MG) e nos locais em que esteve hospedado em viagens pelo Brasil e mundo afora. Um volume vem sendo publicado a cada ano, abrangendo, cada um, dois de seus oito anos de mandato. Com o que chega nesta semana às livrarias (Companhia das Letras, 840 páginas, 79,90 reais), fica faltando só o volume final, prometido para 2018.
A segunda sensação que se colhe é de uma Presidência sob permanente cerco de forças adversas. Quando não é um desastre econômico, é a denúncia de um escândalo, ou suposto escândalo; quando não é a penosa necessidade de dispensar um querido colaborador, é o MST, no auge de sua atuação provocadora. Diante dos seguidos sobressaltos, o presidente, no segredo de confessionário que é a relação com o gravador, desabafa ora com amargura, ora com exasperação, num tom que contrasta com sua calma e bem-humorada figura pública. “Estou modernizando o Brasil, botando algumas coisas em ordem, inclusive a questão da moral pública, (…) mas estou apoiado por forças arcaicas, algumas delas até mesmo misturadas com a podridão do Congresso. Este é o drama, a chave da política brasileira: há um bando de gente desligada da História”, diz, numa ocasião.
Logo de saída, em janeiro de 1999, na aurora do segundo mandato, a tentativa de vencer o que o presidente chama de “armadilha cambial” resulta em desastre. Como o presidente do Banco Central, Gustavo Franco, se recusava a fazer a desvalorização do real, é substituído por Francisco (“Chico”) Lopes. O novo presidente implanta um sistema de bandas para flutuação do dólar, e nas primeiras horas tanto parecia que o país escaparia ileso da manobra que naquela noite o presidente foi jogar “um poquerzinho”. Ele se deixava tomar por uma ilusão: o Brasil já estaria mais parecido com a Inglaterra do que com o México. “A Inglaterra fez uma desvalorização, o mercado aceitou, e não aconteceu nada. O México fez uma desvalorização, o mercado não aceitou e deu um pulo, desvalorizou muito.”
A desilusão veio a galope. Em dois dias o sistema de Chico Lopes estava destruído por um avassalador ataque especulativo. De 1,21 real por dólar em 13 de janeiro, dia da mudança, passou-se a 1,44 no dia 15, enquanto a Bolsa de São Paulo mergulhava no abismo. O dólar continuou subindo e no fim do mês alcançaria 2 reais. “Acho que fizemos uma violência e a nossa confiança diminuiu muito”, confessou o presidente ao gravador. O próprio Chico Lopes foi tragado no turbilhão e demitido. “O Chico foi mais que cordial nessa hora, disse que tudo bem, que ele diria que apresentou a demissão em caráter pessoal.”1 Armínio Fraga substituiu-o. Para desgraça do governo, a crise cambial somava-se ao ajuste fiscal em vigor desde o ano anterior, sob a pressão do FMI.
1 Francisco Lopes, que continua à frente de sua consultoria Macrométrica, afirma: “As coisas que o Fernando Henrique escreve sobre mim têm uma posição elegante, mas às vezes com imprecisões. Ele nunca explicou direito que tipo de pressão teve para me demitir”. Sobre sua passagem pelo governo, diz que “foi como ser atingido por uma doença, uma gripe, ou coisa pior”.
Precisava de algo mais para tornar aquele janeiro um mês de pesadelo? Precisava. O novo governador de Minas Gerais, Itamar Franco, decretou a moratória da dívida do estado para com a União. Foi a primeira de uma série de atitudes em que levaria a extremos a arte de azucrinar. Ao gravador, em sucessivas explosões, FHC dizia que precisava “dar uma paulada firme nele”, que ele “agia sem medir as consequências”, que era “o irresponsável de sempre”, que já no Plano Real opôs “uma dificuldade imensa, por causa de gente que está com ele hoje, sobretudo o [Alexandre] Dupeyrat”.2 E mais: “Fui a ama-seca dele quando ele era presidente”.
2 Alexandre Dupeyrat, hoje advogado no Rio de Janeiro, nega que tenha oposto dificuldades ao Plano Real: “Eu era ministro da Justiça. Se fosse contra, teria saído do governo”. Sobre a moratória, afirma: “A situação do Estado era calamitosa quando Itamar assumiu, estávamos em risco de não poder bancar despesas essenciais, como segurança pública e hospitais”.
FHC evoca dois episódios em que militares o procuraram para externar preocupação com Itamar. No primeiro, depois do Carnaval em que o então presidente se engraçou com Lilian Ramos, modelo famosa não pelo que vestia na ocasião, mas pelo que não vestia debaixo da saia, o general Romildo Canhim, então ministro da Administração, comunicou-lhe que os comandantes queriam saber se seguiria ministro da Fazenda, em caso de Itamar ser afastado. “Eu disse ao Canhim que não, que nem um dia.”3 No segundo, o ministro do Exército, general Zenildo de Lucena, num almoço a que estavam presentes também o subchefe do Estado-Maior, general Gleuber Vieira, e o diplomata Eduardo dos Santos, afirmou-se “preocupado com a falta de firmeza do Itamar” e pediu-lhe que tivesse “uma posição de destaque para poder levar o Brasil para a frente na parte econômica”.4
3 O general Canhim faleceu em 2006. Seu filho Marcelo Canhim diz que nunca ouviu do pai comentário sobre o assunto. “Não estou desmentindo o Fernando Henrique, que era próximo de meu pai. O que posso assegurar é que meu pai saiu com muita admiração pelo Itamar.”
4 O general Zenildo, aos 87 anos, está internado em estado grave. Sua esposa, Maria Edith, diz que nunca ouviu falar no assunto: “Zenildo achava o Itamar uma pessoa incrível, mas sem o preparo de FHC”. O diplomata Eduardo dos Santos, hoje embaixador do Brasil em Londres, lembra-se do almoço: “Havia ali uma preocupação econômica. Não lembro dessa preocupação política. Talvez tenha surgido em outro almoço”.
O início aziago do segundo mandato jogou a popularidade de Fernando Henrique no chão. Em maio o instituto Vox Populi apurou um total de 51% de ruim e péssimo para o governo, contra 15% de bom e ótimo. O presidente via até “hostilidade” à sua pessoa. Em julho, a economia já se recompunha. A inflação, anualizada, era de 4,6%; a taxa Selic, de estratosféricos 21%, pôde ser baixada para um pouco menos estratosféricos 19,5%; e o dólar ficava entre 1,75 e 1,80. Mesmo assim, em agosto o Ibope cravava 66% de ruim/péssimo, o maior índice de um presidente desde a redemocratização.
No interior do governo, o ministro da Saúde, José Serra, representava a oposição à política econômica comandada pelo ministro da Fazenda, Pedro Malan. Em setembro de 1999, para surpresa de Fernando Henrique, Serra lhe sugere a nomeação de Delfim Netto para ministro; chega a FHC que Serra até já sondara Delfim a respeito. “Ou seja, o Serra continua na sua cruzada para derrubar o Malan e pensando no Delfim”, registra. “Eu respondi: ‘Serra, como eu vou nomear o Delfim? Primeiro, é completamente alheio à nossa tradição política; segundo, todo o passado vem à tona de novo, vai me criar uma situação muito embaraçosa aqui’.”5 Naquele mesmo mês, a afirmação do ministro do Desenvolvimento, Clóvis Carvalho, num discurso, de que “excesso de cautela é covardia” foi lida como crítica à política ortodoxa de Malan, e Fernando Henrique enfrentou o doloroso processo de demitir o “amigo” Clóvis, “um colaborador, um homem que deu de si seis anos me ajudando para valer”.6
5 Delfim Netto afirma que nunca entendeu como sondagem as conversas com Serra. “Ele podia ter essas conversas com o Fernando, não comigo. É que eu e Serra pensamos parecido, sobretudo em matéria de câmbio, mas o Fernando preferiu continuar errado.”
6 Clóvis Carvalho diz que Malan não era seu alvo: “Queria desconstruir a perversa antinomia da ‘estabilidade versus desenvolvimento’. Para isso era preciso sair da defensiva e aceitar uma dose de ousadia. Dada a repercussão da minha fala, o presidente não tinha alternativa. Ele tinha mesmo de me retirar do cenário”.
Outras vezes era Malan quem queria sair. FHC não deixava, mas houve um momento em que, angustiado pela baixa popularidade, confidenciou ao gravador: “Para ser sincero, que ninguém me ouça, se eu quiser mudar realmente a imagem, vou ter que mudar o Malan, porque o Malan representa hoje a imagem não apenas do equilíbrio fiscal, da estabilização, mas do imobilismo na área do desenvolvimento. (…) o diabo é que não há quem pôr lá. São cogitações que ficam aqui, bastante fechadas”.
A sucessão presidencial acirrava os ânimos no interior do PSDB. “Conversei com o Serra, e já o notei começando a assumir a possibilidade de uma candidatura a presidente”, anota Fernando Henrique, em janeiro de 2000. Em agosto, o candidato a candidato era outro: “Almocei com o Paulo Renato [ministro da Educação]. Ele está razoavelmente bem em São Paulo, mas olhando para cima [a Presidência], o que me parece prematuro”. E, em dezembro, outro ainda: “O Serra muito aborrecido com as declarações do Mário Covas [governador de São Paulo], que está apoiando extemporaneamente o Tasso [Jereissati, governador do Ceará]”. Tudo somado, o resultado era confusão: “Ou nós organizamos o miolo do PSDB ou não há o que fazer, porque um desconfia do outro, o Serra do Tasso, o Tasso do Serra, todos do Covas, o Covas de todos, porque são todos candidatos”.7
7 Tasso Jereissati declara: “Lembro bem que havia três pré-candidatos: eu, lançado pelo Covas; o Serra, candidatíssimo; e o Paulo Renato. Naquele ambiente palaciano a disputa era muito grande entre Paulo Renato e Serra, tanto que um lançou um programa de proteção social na Saúde e o outro lançou na Educação”.
Outra ordem de problemas vinha do PMDB. Para integrar-se à base formada na origem por PSDB e PFL, o partido mantinha uma conta que, além de nunca fechar, exigia olho atento para os gatos escondidos nas dobras. “O PMDB está amuado. Eles pretendem forçar a nomeação de pessoas que não têm competência adequada para o cargo ou, pior, a têm, mas a quem falta consistência moral para o exercício do cargo”, registrou o presidente, ao comentar a ostensiva ausência do líder do partido na Câmara, Geddel Vieira Lima (aquele mesmo), num evento.8 De seu lado, o líder do PMDB no Senado, Jader Barbalho, um dia apareceu “com a cara amarrada”, dizendo que o partido estava mal atendido nas nomeações do segundo escalão. “Na verdade o que eles queriam mesmo (…) era colocar o Moreira Franco (aquele mesmo) na presidência da Petrobras.”9 Seis meses depois, a estatal continuava na mira dos peemedebistas. O mesmo Jader aparece “preocupado porque não sai a nomeação de quem ele indicou para a Petrobras”.
8 Consultado, Geddel Vieira nem quis ouvir o que consta sobre ele nos Diários
9 Moreira Franco afirma: “Eu nunca tive interesse profissional pelo cargo de presidente da Petrobras nem soube de nenhuma articulação para isso. Nunca tive interesse pelo mercado internacional nem pelo mercado de commodities”.
Outro destacado peemedebista, Eliseu Padilha (aquele) era ministro dos Transportes. Em novembro de 1999, o presidente registra que telefonou para Padilha por causa de “maroteiras” denunciadas pela Folha de S. Paulo, e que Padilha o tranquilizou, dizendo já ter tomado providências e que ele próprio nada tinha a ver com o caso. “Tomara”, diz FHC. Um ano depois, em novembro de 2000, Padilha lhe comunica que quer deixar o ministério. “Ele não aguenta mais o DNER, vive na corda bamba, uma situação perigosíssima, até em matéria de corrupção dos outros.”10 Para coroar a presença nos Diários de peemedebistas hoje ainda mais em evidência do que então, o caso dos “grampos do BNDES”, em que Fernando Henrique surge indicando suas preferências entre os concorrentes no leilão das telefônicas, vai fazer surgir… quem? Com a palavra o presidente: “Dizem que o grampo teria sido feito por um tal de Eduardo Cunha, que foi ligado ao Collor”.
10 Eliseu Padilha considera que “não lhe cabe comentar” as afirmações do ex-presidente, por quem tem “muito apreço”.
Individualmente, as figuras que mais atazanaram o presidente, e com uma característica comum de comportamento pueril e de situações de ópera-bufa, foram Itamar Franco, que continuava aprontando das suas, e o presidente do Senado e figura central do PFL, Antonio Carlos Magalhães. Quando o governo federal cortou os aportes da União ao governo mineiro, em represália à moratória do estado, Itamar ameaçou mobilizar a Polícia Militar para prevenir um possível “caos social”. “Itamar, ensandecido, imagina Minas cercada, em chamas, ele morrendo queimado na pira da pátria.” Em junho de 2000, FHC atribui a Dupeyrat, assessor especial do governador mineiro, a afirmação de que “o governo federal estaria treinando tropas em São Paulo com armas de grosso calibre para atacar Minas Gerais”.11
11 Dupeyrat diz que FHC o interpelou judicialmente para saber se tinha dito isso. “Eu provei que não e aí morreu o assunto.” Sobre os atritos entre Itamar e FHC, diz: “O que há por trás é que, depois que a candidatura do Fernando se consolidou, ele mudou em relação ao Itamar. Nessa época eu frequentava o gabinete quase todo dia e sentia que o Itamar tinha certo amargor com essa mudança de postura”.
Em setembro, o MST promove mais uma de suas repetidas ameaças de invadir a fazenda de FHC em Buritis. Como Itamar se recusa a mobilizar a PM para protegê-la, o governo federal recorre a tropas do Exército, e a resposta de Itamar é uma “carta insolente”, em que exige a retirada das tropas do estado. “Hoje li nos jornais que ele [Itamar] se comparou ao Allende, disse que a situação de Minas era como a Guerra do Golfo, uma loucura total, botou tropas na frente do Palácio da Liberdade.” As coisas estavam mais para a galhofa, mas o presidente do Supremo Tribunal Federal, o mineiro Carlos Velloso, preocupava-se. Falava com um e outro, tentava intermediar, “sempre querendo dar muita atenção ao Itamar, porque sabe que ele é emocional”.12
12 O ex-ministro Carlos Velloso lembra que Itamar telefonava dizendo que não queria que as tropas federais “invadissem” o território mineiro. “Eu o acalmava, dizia que não se tratava disso, que aquilo era uma propriedade do presidente da República.” Velloso temia a possibilidade de surgir um conflito entre as tropas da PM mineira e as federais, “mas prevaleceu o bom-senso”.
Antonio Carlos Magalhães representava um número em que ele era o forte, o presidente o fraco; ele o decidido, o presidente o indeciso. “Hoje vem jantar aqui o Antonio Carlos. Ele já colocou tudo no jornal, para criar o clima e depois dar uma declaração à imprensa dizendo que está me orientando, dando ordens ao governo etc.” (abril, 1999). “[ACM] dizendo que se fosse presidente da República teria resolvido a pobreza no Brasil. Está cada vez mais populista e demagogo e abarca qualquer bandeira” (agosto, 1999). As provocações iam além das palavras. Em junho de 1999, graças a manobras no Congresso, ACM consegue estender a validade do regime de favorecimento à indústria automobilística, de modo a facilitar a instalação de uma fábrica da Ford na Bahia. “Quando o Antonio Carlos esteve aqui com o César Borges [governador da Bahia] e o presidente da Ford, eu disse claramente que não podia mudar a lei”, registra o presidente. No entanto, “armaram uma cilada contra mim”.
Há uma conversa tensa. ACM “veio tonitruante, ameaçando, a Bahia, não sei quê, eu disse a ele que era presidente de todos os brasileiros (…). Ele então respondeu: ‘Fizeram concessões no Rio Grande do Sul, tenho gravação’. Eu disse: ‘Antonio Carlos, não venha falar comigo de gravações’”.13 Em fins de 1999, ACM ameaçava com uma emenda para impor limites às medidas provisórias. No início de 2000, empunhou a bandeira de um salário mínimo de 100 dólares (180 reais), além do que o governo se dispunha a conceder. “Antonio Carlos o tempo todo fazendo o jogo da oposição somente para tirar sarro, como se diz na gíria, do governo.”14
13 César Borges, hoje presidente da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias, recorda: “Estávamos em entendimento com a Ford, mas a condição era a prorrogação do regime automotivo. Em 2 de julho, chegou a notícia de que o presidente iria vetá-lo. Antonio Carlos ligou para Brasília e disse que consideraríamos isso uma afronta à Bahia e romperíamos com o governo. Houve um momento de tensão e Fernando Henrique vetou, mas depois houve um entendimento e a Ford veio para a Bahia”.
14 ACM Neto, prefeito de Salvador, atribui os atritos entre FHC e seu avô aos “estilos distintos”: “Todos sabem que eles não tinham aquele tipo de relação de cumplicidade verdadeira, de profunda amizade. Mas é bom frisar que, durante o tempo em que ACM foi presidente do Congresso, as diferenças nunca prejudicaram o andamento das questões essenciais ao país.
A paciência do presidente se ia esgotando. “Vou dizer ao Marco Maciel [vice-presidente, do PFL] que se prepare, porque não vou aguentar mais o Antonio Carlos” (junho, 2000). “Jorge [Bornhausen, presidente do PFL] me disse que quando eu achar necessário que o chame e nós liquidamos a fatura. Todo mundo está louco para se livrar do Antonio Carlos” (dezembro, 2000).15 O problema era que ACM tinha outra face, o lado dois da bufonaria. “Antonio Carlos foi à tarde ao Palácio do Planalto, chorou várias vezes, protestou amor, perguntou por que eu me queixo dele” (novembro, 2000). “[ACM] me telefonou para me desejar bom Natal e ao mesmo tempo me pedir desculpas pelo que teria dito a mim. É a técnica dele: fere e assopra” (dezembro, 2000).
15 Jorge Bornhausen, hoje afastado da política, confirma que apoiaria o rompimento com ACM e que chegou a pedir sua expulsão do PFL. “ACM era um aliado quando lhe interessava,
ao contrário de seu filho Luís Eduardo, excepcional homem público.”
Falta, para completar o elenco dos terrores do presidente, falar do maior deles, a imprensa, terror dos terrores, “provinciana”, “gosta mesmo é da picuinha, da intriga”, “maldosa”, “simplista”, “impiedosa”, “convencida de que somos todos ladrões”, dona “de um poder de destruição realmente extraordinário”. A irritação começa pela perseguição dos profissionais da imprensa (“Hoje estamos aqui [em Comandatuba, em fevereiro de 1999] cercados por repórteres, mal podemos sair à praia”), passa pelos erros factuais (“Li na imprensa reflexos da derrubada do Clóvis [Carvalho]. O Clóvis agiu bem, não houve nada de ‘Eu não me demito, você é que me demita’, nada disso. Também não é verdade que ele tenha me telefonado do Ceará para cá, eu é que telefonei para ele vir”) e desemboca nos efeitos daninhos da crítica pertinaz (“A necessidade permanente de ver o abismo por perto, como a imprensa coloca — e ela vive disso —, é terrível, porque diminui o ânimo da população”).
Entre todos os órgãos de comunicação, o jornal Folha de S.Paulo, o mais ativo na denúncia de escândalos ou supostos escândalos, era o que mais enraivecia o presidente: “É impressionante esse niilismo que tem como carro-chefe a Folha de S.Paulo, com o apoio auxiliar das universidades”; “A Folha quer ser governo, e ao querer ser governo só atrapalha o Brasil”; “Se fôssemos contabilizar o mal que a Folha tem feito, prejudicando a economia nacional, veríamos que é grande”; “A Folha é hoje o que foi a Tribuna da Imprensa, no tempo do Lacerda contra o Getúlio”. Em julho de 2000 o jornal Valor publica que o ex-secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge, quando no cargo, mantivera repetidas conversas ao telefone com o juiz Nicolau dos Santos Neto, presidente do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, famoso pelo desvio de verbas destinadas à construção da sede da entidade. Fernando Henrique lamenta que o querido assessor de muitos anos, um “homem honrado”, estivesse “como se fosse numa grande operação para roubar junto com o juiz Nicolau”.
O assunto dominava o noticiário. O jornal O Estado de S. Paulo mencionou um motorista que teria testemunhado encontros entre Eduardo Jorge e o juiz Nicolau. “(…) eles querem repetir a saga Collor. Tem Collor, que sou eu, tem o PC, que era o Serjão, então tem que ter o motorista.” O tom no gravador evolui, de um lamento profundo (“O desgaste meu e do governo é enorme nestes dias, o estrago causado pela ‘questão Eduardo Jorge’ foi incomensurável, o maior que já sofri sem ter feito nada”) ao recurso à palavra mais funesta da política brasileira, a palavra “sanha”, usada por Getúlio Vargas na carta-testamento “(…) me lembrei do Getúlio, da sanha dos inimigos. Nem é o PT, é a imprensa, ela tem sanha, quer destruir”.16 Fernando Henrique vê como pontos vulneráveis de Eduardo Jorge ele ser amigo “desse Luiz Estevão” (ex-senador, parceiro do juiz Nicolau nas falcatruas) e ter “se enveredado a ganhar dinheiro depressa”, mas afirma não ver nada de concreto contra ele, “só aparências”.17 Em dezembro de 2000 o juiz finalmente se entrega à polícia, depois de meses foragido, e a Folha publica que a decisão era fruto de um acordo, sob as bênçãos de FHC, pelo qual, em troca do silêncio sobre o envolvimento de Eduardo Jorge, Nicolau seria bem tratado. “Infâmia total! Fiquei indignado!”
16 Eduardo Jorge, hoje “num sabático em Portugal”, como ele diz, concorda que seu caso “foi o maior desgaste que o governo sofreu, sem sombra de dúvida”. E acrescenta: “Ao mesmo tempo, o presidente nunca me abandonou, sempre confiou em mim”.
17 Eduardo Jorge atribui a suspeita à “fofocaiada de Brasília”: “Chega ao ouvido do presidente que ‘Eduardo Jorge está ganhando dinheiro, Eduardo Jorge está ganhando dinheiro’. Quem me dera estivesse ganhando tanto assim”. Sobre a amizade com Luiz Estevão, afirma: “Eu não frequentava o Luiz Estevão, Luiz Estevão não me frequentava. Ele era um senador de Brasília contemporâneo dos meus irmãos na época de colégio. Mas eu me dava bem com ele, não estou negando. Ele não deixava de ser um correligionário político e tínhamos liberdade de um ligar para o outro, esse tipo de coisa”.
Momentos de trégua para o presidente eram o aconchego dos amigos e familiares, o convívio com colaboradores não políticos e as viagens ao exterior. Num domingo de maio de 2000 ele se põe a falar da vida no Palácio da Alvorada e dos servidores que ali o atendem. Fala do garçom Demerval, “com quem é muito interessante conversar”, do “senhor que limpa a piscina, o Antônio”, e se detém nos ajudantes de ordens, oficiais das Forças Armadas que funcionam como paus para toda obra. Entre outros menciona “o Aldo Miyaguti, major da Aeronáutica, de origem japonesa, um rapaz muito agradável”,18 o Tomás, com quem “também conversava muito”,19 e o Villaça — “Este sempre opinava, falava, fiquei sabendo de alguma coisa, de como pensam as Forças Armadas”.20 Nas viagens ao exterior, como à Holanda, em outubro de 2000, fala a empresários, é aplaudido e conclui que “eles sabem que estamos mudando o Brasil para melhor”. Na Alemanha, na mesma linha, regozija-se de o Brasil ser visto de forma diferente “da mesquinharia, da pequena briga política”.
18 Aldo Miyaguti, hoje brigadeiro da reserva, recorda: “Como a gente passava o dia inteiro com o presidente, desde a hora em que acordava até a hora em que ia dormir, sempre surgiam conversas. Eu sou de origem japonesa e, como era solteiro, o presidente brincava muito comigo, me apresentou à filha do presidente Fujimori e a uma das filhas do imperador japonês. Ele brincava com isso, era o jeito dele”.
19 Tomás Ribeiro Paiva, general do Exército e atualmente chefe de gabinete do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, diz que tem amizade com FHC até hoje. “Para mim, foi um tempo que nunca esqueço, de muito aprendizado. Nessa função modesta, com perspicácia, você é um espectador privilegiado da história.”
20 José Villaça, hoje brigadeiro da reserva, afirma: “Guardo lembranças muito agradáveis, de uma pessoa competente, calma, serena, com uma visão fantástica de mundo. Não me lembro em momento algum de uma imagem dele irritado. Eu aprendi muito, porque você vê uma pessoa que lida com muitas dificuldades e consegue conciliar, manter a tranquilidade, sempre brincalhão”.
A terceira sensação a colher do novo volume dos Diários é de uma injustiça. O governo FHC, caso raro no Brasil, obedecia a uma racionalidade; o objetivo, tal qual declara o presidente reiteradas vezes, era adaptar o país à fase do capitalismo globalizado. Foi um governo pioneiro em programas sociais como o Bolsa Escola, matriz do Bolsa Família do sucessor. FHC foi um raro presidente brasileiro que conhecia o mundo e gozava de prestígio pessoal junto a líderes estrangeiros. Não era para tanta impertinência e tanta hostilidade. Leonel Brizola e o PT pregavam seu impeachment. Ao fim do período coberto pelo novo livro, os indicadores econômicos eram razoáveis, dadas as circunstâncias: o PIB cresceu 4,3% em 2000, a inflação foi de 5,97% e o desemprego fechou em 7,1%. Mesmo assim, os que consideravam o governo ruim ou péssimo continuavam a superar os que o consideravam ótimo ou bom (37% a 23% no Datafolha, em outubro de 2000).
Numa conversa com José Roberto Marinho, vice-presidente das organizações Globo, Fernando Henrique julgou ter vislumbrado uma das razões para isso. Os dois comentavam a cobertura na TV de uma manifestação de índios na Bahia, em protesto contra as comemorações dos 500 anos do Descobrimento. “O índio se ajoelha diante da polícia, a polícia passa diante dele e não faz nada, mas sai no mundo todo o índio ajoelhado e a polícia com aquelas caras ferozes, escudo e tal”, registra o presidente. E conclui, resignado:
“Ganhou o índio, obviamente”.
Com reportagem de João Pedroso de Campos
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