Ao confirmar sua presença no Fórum Econômico Mundial, em Davos, o presidente Jair Bolsonaro tinha uma ambição altaneira: mostrar o “novo Brasil” — um país que emergiu das eleições com ímpeto econômico liberal e livre do “viés ideológico”, para usar a expressão que lhe é particularmente cara. Confirmou sua presença com mais de um mês de antecedência, o que animou a organização do evento: presidentes costumam decidir pela ida poucos dias antes. A antecipação, aliada à ausência de nomes de peso de economias desenvolvidas — o americano Donald Trump, a britânica Theresa May e o francês Emmanuel Macron estão todos enrolados com problemas domésticos —, permitiu que o presidente tivesse destaque não outorgado a um brasileiro desde os tempos em que, para desespero do PT, Lula preferia ir a Davos a participar do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, que aspirava a ser a versão esquerdista da reunião suíça. Tudo conspirava, portanto, a favor do mandatário brasileiro. Infelizmente, ele tomou decisões que prejudicaram seu desempenho em um evento no qual tinha tudo para brilhar. Mal assessorado, desperdiçou o tempo que lhe fora dado para discursar e demonstrou, a cada minuto de sua estada em Davos, não ter ideia do código de conduta vigente no balneário suíço. Mas, graças sobretudo ao ministro da Economia, Paulo Guedes, o Brasil passou a investidores a mensagem de que vai perseguir o caminho da responsabilidade e da racionalidade financeiras. Não foi o vexame que os adversários previam, tampouco foi o triunfo que os aliados desejavam.
A decepção maior foi o discurso de abertura do presidente, na terça-feira 22. Ainda que a essência do recado tenha sido bem compreendida por investidores e empresários (abertura de mercado, privatizações, desburocratização e segurança jurídica), a fala pesou em pontos programáticos que ou não interessavam aos presentes, ou eram inapropriados para um fórum econômico. Aí, o alinhamento de declarações entre Bolsonaro e Paulo Guedes não se mostrou tão claro. Esperava-se menos pregação e mais pragmatismo do presidente brasileiro — pragmatismo que apareceria mais tarde, depois do discurso, quando ele anunciou que o Brasil não abandonará o Acordo de Paris (veja a Carta ao Leitor). Ao apelo por investimentos, seguiu-se a promessa de “livrar o Brasil do bolivarianismo”. O presidente não detalhou reformas econômicas e dedicou parte de seu discurso a falar sobre a “defesa da família” e dos “verdadeiros direitos humanos” (não esclareceu quais seriam os “falsos direitos humanos”).
Na saída de uma reunião de CEOs com Bolsonaro e sua equipe promovida pelo Bank of America, o presidente do conselho da Nestlé, Paul Bulcke, comentou ter sentido “sinais mistos” ao ouvir a equipe presidencial falar sobre temas econômicos. Ainda assim, declarou-se otimista com o Brasil. Guedes bem que tentou contrabandear mais informações para o discurso presidencial, mas teve de cumprir a missão por conta própria. O presidente terminou ofuscado por seu ministro, que dissertou de forma implacavelmente clara sobre o que pretende fazer em sua gestão — por exemplo, reduzir a carga tributária das empresas de 34% para 15% e inserir os militares na reforma da Previdência. De forma geral, empresários acharam o discurso de Bolsonaro genérico e demasiado breve, mas se animaram ao travar conversas mais privadas com Guedes.
A orientação recebida pelo presidente sobre como se conduzir em Davos veio de grupos pouco familiarizados com a fauna local: o deputado Eduardo Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo e seu ajudante, o assistente para assuntos internacionais da Presidência, Filipe Martins. Bolsonaro não foi avisado de que o discurso de seis minutos era incompatível com o histórico de seus pares em Davos. Para ficar em exemplos recentes, Emmanuel Macron falou durante 45 minutos à maior plateia de chefes de Estado já vista no evento, em 2018. Donald Trump foi mais conciso: vinte minutos. Neste ano, Angela Merkel falou por cinquenta minutos cravados, em alemão, a uma plateia lotada, que não saiu enquanto a chanceler não terminou o que tinha a dizer.
Também houve derrapagens no campo da etiqueta, do protocolo e até do vestuário (Bolsonaro subiu ao palco do evento com um sobretudo, o que não cai bem em interiores aquecidos). Em reuniões privadas, como jantares e eventos considerados off the record, participantes não podem tirar fotos nem publicar o que quer que seja nas redes sociais. A turma do presidente brasileiro demonstrou desconhecer essa regra tácita — Eduardo Bolsonaro era o principal responsável por postagens inadequadas. O tamanho e o comportamento da delegação eram incompatíveis com os costumes locais. O presidente tinha pelo menos cinco seguranças (entre agentes da Polícia Federal e do Exército) que o cercavam aonde fosse, dois ajudantes de ordens — um capitão e um major —, o médico presidencial, doutor Camarinha, um fotógrafo e pelo menos cinco oficiais do Itamaraty, sem contar os assessores de imprensa e o trio Eduardo-Araújo-Martins. Em número, a delegação brasileira é equiparável à de Donald Trump, composta de agentes da CIA, e à de ditadores africanos, que levam consigo todas as patentes de seu Exército nacional. Iván Duque, presidente da Colômbia, tinha menos de cinco auxiliares em seu entorno. Um tuiteiro bolsonarista que mora na Suíça, Hiram Galdino Torres, ainda pegou carona na comitiva presidencial, e grupos de bolsonaristas surpreenderam o “mito” sozinho durante um almoço em um bandejão local. A escapada solitária foi atípica por muitas razões, mas sobretudo por não ter sido acompanhada pelo trio infalível Eduardo-Araújo-Martins, que não desgrudava do presidente.
Em jantares aos quais apenas Bolsonaro havia sido convidado, o constrangimento imperava. Sua turma era barrada, e o Itamaraty tinha de exercitar a mais fina diplomacia para desembaraçar a entrada não prevista do séquito presidencial. Em um dos jantares, oferecido pelo fundador do Fórum, Klaus Schwab, Ernesto Araújo precisou esperar seu subordinado, Carlos Alberto Franco França, diplomata recém-conduzido ao cerimonial do Planalto, dar uma carteirada para liberar sua entrada. O mesmo foi feito para salvar Filipe Martins da condição de penetra. Seu passe livre, dizia a chancelaria brasileira aos organizadores do Fórum, era ser o tradutor de Bolsonaro. Ele terminou acomodado ao lado de Tim Cook, CEO da Apple. Outros convidados eram John Kerry, ex-secretário de Estado dos EUA, e Christine Lagarde, diretora-geral do FMI. Na quarta-feira 23, Martins mais uma vez quase acabou barrado na reunião que culminou na declaração conjunta de Brasil e Colômbia sobre reconhecer o governo provisório da Venezuela. Mas rapidamente contornou o entrave — no fim do encontro, era ele quem ditava as ordens sobre onde seria o anúncio e se o presidente falaria ou não com a imprensa sobre a decisão diplomática. Martins, devotado discípulo do filósofo Olavo de Carvalho, foi intermediador da indicação de Araújo à chancelaria.
Ao presidente também não informaram o poder da palavra na Suíça. Ao concordar em dar uma entrevista coletiva à imprensa, Bolsonaro fez a organização reservar uma sala e anunciar aos quatro ventos que ele responderia a perguntas de jornalistas brasileiros e estrangeiros. Meia hora antes do evento, Bolsonaro deixou o local sem dar maiores explicações nem sequer cancelar o combinado, numa quebra de protocolo inédita para os padrões de Davos. Os organizadores ficaram sem ter o que dizer aos jornalistas. Além de não estarem acostumados a trabalhar em vão, viram-se, inadvertidamente, em uma situação embaraçosa. O único membro da equipe presidencial a comparecer ao local da coletiva foi o ministro da Justiça, Sergio Moro, que, ao constatar a ausência dos demais, foi embora sem dar declaração. Não havia sido avisado da desistência de seu chefe.
O ministro, assim como Guedes, foi um dos pilares de Bolsonaro no evento. “Aqui entre nós, meu ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, é o homem certo para o combate à corrupção e o combate à lavagem de dinheiro”, disse o presidente, ao introduzir Moro em seu discurso. Nas discussões das quais participou para tratar especificamente de corrupção, Moro fez a defesa sem ressalvas de seu superior, inclusive quando questionado sobre Flavio Bolsonaro. “O governo tem um discurso forte contra a corrupção”, asseverou, argumentando que, pela primeira vez em trinta anos, ministérios e outros cargos federais não foram rifados na barganha pelo poder. As nomeações, garantiu, privilegiaram pessoas “técnicas”. Moro foi pragmático. Cumpriu agendas, não levou figuras inadequadas a tiracolo e respondeu como pôde às perguntas que lhe fizeram, ainda que tenha sido evasivo sobre o affair Flavio Bolsonaro.
João Doria, governador de São Paulo, foi a Davos com apenas um secretário. Com mais de vinte compromissos marcados, apareceu munido de uma centena de livretos com o resumo das oportunidades de negócio no estado, além de um pen drive com um vídeo sobre a cidade de São Paulo. Bolsonaro e Guedes, em bate-papo informal com empresários brasileiros, afirmaram, meio de brincadeira, que o tucano será o novo presidente do Brasil. O pragmatismo do ministro da Economia, a objetividade do titular da Justiça e o profissionalismo do governador de São Paulo foram um contraste e uma compensação ao desempenho de Jair Bolsonaro.
Publicado em VEJA de 30 de janeiro de 2019, edição nº 2619
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