Entre as dezenas de lições ensinadas à humanidade pela pandemia (nem todas aprendidas, diga-se), uma das mais permanentes é a importância de um lar confortável e completo. Durante alguns meses, casas e apartamentos se tornaram o universo exclusivo das famílias enclausuradas no trabalho remoto e no ensino a distância — e assim muitas seguem, com a rotina radicalmente reformulada. Entre quatro paredes, os quarenteners tiveram tempo de sobra para olhar em volta e avaliar cômodos, objetos e móveis do lar não mais tão doce e perceber seus defeitos no detalhe. Com novas demandas à mesa, necessidade de rearranjo de espaços e dinheiro (das viagens canceladas) para gastar, deu-se o estalo: é hora de reformar. O resultado é que nunca antes neste país, mesmo tendo ele passado meses parado e desanimado, se investiu tanto em melhorias domésticas.
O setor que engloba construção, arquitetura e decoração teve em 2020 um de seus anos mais surpreendentes. No início da crise, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic) chegou a prever um encolhimento de até 11%, mas em dezembro, diante da demanda inesperada, a projeção recuara para 2,8%. Mais: em pleno avanço do desemprego, até outubro haviam sido criados quase 140 000 postos de trabalho. E a expectativa é de que o impulso se mantenha e alavanque uma subida de 4% em 2021 — a maior em quase uma década. “Após quatro anos de pouca procura, fico feliz em dizer que nunca trabalhei tanto”, diz a arquiteta Julia Oddone, que decidiu se tornar autônoma no fim de 2019 e não parou desde então. Outra pesquisa, essa do grupo Consumoteca, uma consultoria voltada para padrões de consumo, cultura e inovação, mostrou que 55% das pessoas de maior poder aquisitivo no Brasil fizeram alguma mudança na casa durante a quarentena. Nem só os ricos reformaram — 39% de famílias da classe C também mexeram em sua moradia.
O cômodo que mais atraiu as atenções foi, como era de se esperar, o escritório, um espaço que nem existia, ou se apertava em um vão de escada, na maioria das casas. “As pessoas precisam de um mínimo de privacidade e conforto para fazer home office. Poucas tinham um local exclusivo e só perceberam isso quando a necessidade bateu à porta”, diz o arquiteto Alberto Barbour. Em segundo lugar nas reformas, empatadas, estão a cozinha e a sala. A psicóloga Jamile Gomes, que divide o apartamento no Rio de Janeiro com a mãe, o marido e um filho de 3 anos, teve de redesenhar a disposição dos eletrodomésticos para conseguir armazenar os mantimentos necessários à elaboração de três refeições diárias para a família. “A gente comia fora, no trabalho ou em restaurantes. De uma hora para outra, fiquei sem espaço”, conta Jamile, carioca de 36 anos, que ainda aproveitou para remodelar a varanda do apartamento.
A família de Jamile, como muitas, teve a renda reduzida durante a quarentena, mas as despesas também diminuíram bastante com o fim dos passeios no shopping, cinema, restaurantes e viagens — o que lhe permitiu poupar para a reforma. “Conseguimos nos organizar para adequar o espaço onde passamos quase 100% do nosso tempo”, diz. Transferir para a melhoria da casa os recursos economizados com o lazer interrompido foi a regra na pandemia. “Em um primeiro momento, quando ainda não se sabia quanto tempo ela ia durar, as pessoas investiram em coisas pequenas, como a compra de um ou outro móvel. Conforme o tempo passou, vieram as reformas mais ambiciosas”, diz Marina Roale, head de pesquisa do Grupo Consumoteca.
Quem não conseguiu amealhar um pé de meia partiu para o plano B: pôr a mão na massa (corrida, no caso). No Google, as buscas por “como pintar parede” e “decoração” deram um salto, principalmente a partir de junho. A psicóloga paulista Ana Paula Figueiredo, de 54 anos, decidiu aproveitar o tempo livre e os dotes artísticos para repaginar diversos cômodos. “Sempre fui de deixar para depois. Ficando só dentro de casa, finalmente mudei o que me incomodava”, comemora. Além de pintar as paredes, Ana Paula trocou lâmpadas para melhorar a iluminação, comprou plantas para alegrar o ambiente e costurou novas almofadas. “Nunca gostei de chamar pessoas de fora para trabalhar na minha casa. Além de resolver problemas, me diverti muito”, afirma.
Segundo especialistas, a relação das pessoas com sua casa nunca mais será a mesma de antes da quarentena. “Ela foi reinventada. Ao nos isolarmos, valorizamos imensamente a segurança e o conforto do lar”, avalia Marina. A reviravolta tem sido comemorada pelos varejistas. A multinacional Saint-Gobain, dona de redes como Telhanorte, Tumelero e Norton, registrou aumento de vendas de quase 40% desde abril e fechou o ano com um crescimento de 12% em relação a 2019. “Nossos best-sellers são sofás, escrivaninhas e itens de cozinha, como panelas”, diz Flavia Marcolini, CEO do CasaShopping, no Rio de Janeiro, especializado em design de interiores (veja o quadro), onde as vendas cresceram 50% desde o início do ano. A procura por matéria-prima de marcenaria e mobiliário foi tanta que houve até falta de alguns itens, como chapas de madeira e espuma para sofá. “Algumas fábricas acabaram parando no início da pandemia e não tiveram tempo de se recuperar antes do boom das vendas”, explica o arquiteto carioca Mauricio Nóbrega, que precisou reagendar a entrega de projetos. A indústria, no entanto, assegura que o abastecimento voltou ao normal e que está preparada para os próximos meses. Haja tinta para tanta parede a ser pintada.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723