História de que ‘o filho é meu, faço o que quiser’ não existe
Os vínculos biológicos não configuram um 'termo de propriedade' sobre a criança. Os pais estão limitados aos ditames legais
Dentre todas as polêmicas que permeiam o cotidiano brasileiro, um dos destaques recentes foi um concurso de beleza infantil no Programa Silvio Santos (SBT), no dia 22 de setembro. O caso serviu como combustível para a discussão sobre o fenômeno cultural da supressão de vivências eminentemente infantis, causado principalmente pelo avanço de tecnologias capazes de alçar uma criança ao patamar de “ídolo” e, consequentemente, torná-la popular e socialmente aceita. De fato, meninas e meninos têm sido incentivados a perseguir, cada vez mais cedo, um “ideal” no qual o objetivo é que eles se tornem “pequenos adultos” — desde a vestimenta, maquiagem e acessórios até ao uso da linguagem e gestual não infantis.
Infelizmente, nos tempos atuais, até a palavra “infantil”, por si só, tornou-se um adjetivo com conotação pejorativa.
Neste contexto, a maior dificuldade imposta aos pais é justamente identificar o tênue liame que separa o incentivo à autonomia e autoestima da criança ou do adolescente daquele meramente egocêntrico e deletério à integridade física e psíquica dos filhos.
Tanto o artigo 227 da Constituição Federal quanto os arts. 4º e 5º do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) estabelecem que “é dever da família, da sociedade e do poder público” assegurar com absoluta prioridade a efetivação de direitos essenciais de crianças e adolescentes (dentre eles, o direito ao respeito), “colocando-os à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Não é por acaso que o legislador estabeleceu esta ordem: família, sociedade e Estado. Quando a família falha (voluntária ou involuntariamente) e a sociedade se omite cabe ao poder público intervir, quer seja através da fixação de diretrizes mínimas que preservem a integridade de crianças e adolescentes ou pela atividade fiscalizatória do cumprimento dos ditames legais.
Os vínculos biológicos não configuram um “termo de propriedade” sobre a criança. Os pais estão limitados aos ditames legais. Esta história de que “o filho é meu, faço o que quiser”, não existe. Muitas vezes, diante do fenômeno social que impõe a exposição midiática como sinônimo de sucesso e felicidade, por “amor aos filhos” ou por medo de serem tachados de repressores ou chatos, os pais deixam de exercer o dever de cuidado e, em nome de uma pseudo-liberdade de crianças e adolescentes, acabam por permitir o acesso ou exposição à conteúdo inadequado.
Infelizmente, nos tempos atuais, até a palavra ‘infantil’, por si só, tornou-se um adjetivo com conotação pejorativa’
Não são raros os casos de crianças e adolescentes que, iludidos pela possibilidade de fama e aceitação, criam canais de internet, gerando conteúdo e disponibilizando sua imagem (com ou sem acompanhamento dos responsáveis legais) de maneira ilimitada. Em tempos de patologias sociais crônicas, mesmo a exposição aparentemente inofensiva e lúdica pode ser utilizada de maneira criminosa. É comum pais desesperados solicitarem auxílio após propagações indevidas da imagem dos filhos pela internet, em vídeos ou memes que eles próprios disponibilizaram, inocentemente.
Em razão de tal vulnerabilidade óbvia dos menores, o Estado tem o dever de intervir na seara privada quando ocorrem violações de direitos de crianças e adolescentes, em âmbito coletivo ou individual, por ação ou omissão da família ou da sociedade. Diversos dispositivos legais brasileiros preveem mecanismos de prevenção e de proteção que, adequadamente aplicados, evitariam que crianças e adolescentes fossem expostos à situações vexatórias e constrangedoras. Um deles é o Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhecido como uma das mais completas legislações especializadas.
O neologismo “adultização” tem sido utilizado para a supressão da infância e, quase sempre, está associado à erotização da imagem de crianças e adolescentes. Muitas vezes, há a necessidade da intervenção do Estado (mesmo contra os pais, empresas ou instituições) para lhes preservar a integridade física e psíquica, concretizando o almejado ideal de proteção integral previsto no ECA. Essa é a única forma de provar que, no Brasil, essa “lei pegou”.
* Simone Moreira de Souza é defensora publica titular da 1ª Vara de Infância, Juventude e Idoso da Capital (Rio de Janeiro)