Até adversários costumam dizer, em tom de elogio, que o presidente Lula é um “animal político”, capaz de transformar rivais em aliados, reconstruir pontes e reescrever histórias. Ministro-chefe da Casa Civil e coordenador da campanha à reeleição de Jair Bolsonaro, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) contou antes da eleição do ano passado que recusou um convite para conversar com o petista porque este é um “sedutor”. O parlamentar — uma raposa reconhecida em cartório — não quis correr o risco de virar a casaca. Enaltecido por aliados, o poder de encantamento de Lula chegou a ser considerado infalível depois de ele fazer uma neófita presidente da República (Dilma Rousseff) e um acadêmico com cara de tucano prefeito de São Paulo (Fernando Haddad). Com tamanho prestígio e experiência, esperava-se que o presidente não tivesse tantas dificuldades na articulação política. Que em seu terceiro mandato a relação com o Congresso fosse de sintonia fina, apesar de a esquerda ter minoria parlamentar. E que o governo gastasse energia para construir consensos em torno dos projetos prioritários para o país, e não com pautas caras apenas à sua base mais fiel. Até agora, não foi o que aconteceu.
Em pouco mais de quatro meses, Lula 3 não conseguiu montar uma base de apoio no Congresso, que já impôs derrotas à sua administração e dá sinais crescentes de descontentamento. Sua debilidade política é resultado de uma combinação de fatores. O presidente insiste em bandeiras ideológicas de seu partido, como a pregação estatizante. Mesmo com a farta distribuição de ministérios a legendas de centro, sua gestão não reproduz na prática a frente ampla montada na campanha eleitoral para derrotar Bolsonaro. Por enquanto, fala-se muito para os convertidos e se dialoga pouco com representantes de outros espectros políticos, que são majoritários no Legislativo. Numa estratégia temerária, o presidente também resolveu confrontar o Congresso, contestando leis que foram aprovadas em legislaturas anteriores por ampla maioria. De forma surpreendente, Lula parece ignorar que a Câmara dos Deputados, por exemplo, é dominada pela centro-direita, que, se é conservadora nos costumes, mostra disposição para aprovar propostas de modernização do Estado e da economia brasileira — propostas que só não avançam no ritmo desejado porque o próprio governo causa turbulências desnecessárias.
Diante do nível de tensão entre o Planalto e o Congresso, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), chamou para si a responsabilidade de fazer os alertas necessários. “A maioria das Casas é conservadora e liberal. Tem determinadas pautas que nos separam e não são interessantes de serem tratadas agora. Temos de focar as energias para o que nos une, tratar do arcabouço fiscal, da reforma tributária”, disse Lira durante o evento do Lide em Nova York. Antes, o deputado já havia declarado que a articulação entre os poderes não era satisfatória. O problema de foco mencionado por Lira ficou evidente na decisão do governo de mudar regras do marco do saneamento básico, que foi aprovado pelo Congresso na legislatura passada. Em reação, a Câmara aprovou um projeto de decreto legislativo suspendendo as alterações promovidas pelo governo, que, segundo os deputados, tinham o objetivo de favorecer estatais que atuam na área, muitas delas ineficientes. Um dos pontos que desagradaram aos parlamentares seria de interesse do ministro-chefe da Casa Civil e ex-governador da Bahia, Rui Costa, e beneficiaria a Empresa Baiana de Águas e Saneamento, que opera atualmente com base num contrato vencido.
Deputados alegam que tentaram conversar com o ministro para tratar do assunto, mas não conseguiram. Apontado como principal responsável pela derrota, Costa afirmou na semana passada que o governo errou ao não se reunir com líderes da Câmara antes da votação. O plenário da Casa rejeitou as mudanças no marco do saneamento por 295 a 136 votos. As bancadas de MDB, PSD e União Brasil — partidos que controlam três ministérios cada um — votaram quase de forma unânime contra o governo. A falta de diálogo com líderes partidários pode até ter contribuído para o placar final, mas o que pesou mesmo foi a disposição do Poder Legislativo de defender um marco regulatório que ele mesmo aprovou e, assim, a própria soberania do Parlamento, algo que Lula não está levando muito a sério. Desde que assumiu o terceiro mandato, o presidente já pregou contra diferentes iniciativas aprovadas pelos congressistas, como a Lei das Estatais, a privatização da Eletrobras e o fim do chamado “voto de qualidade” nos julgamentos do Carf (veja o quadro). A declaração de Lira deixa claro que o Congresso não está disposto a recuar por pressão do presidente, ainda mais para empunhar bandeiras econômicas do PT já testadas e devidamente reprovadas.
Aliado de Lula, o comandante do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), engrossou as críticas ao governo. “É fundamental no Brasil que nós tenhamos respeito ao passado. Ou seja, que aquilo que foi feito por um Congresso Nacional responsável seja respeitado”, afirmou o senador. Ele lembrou ainda que mudanças de legislações ao sabor de governos de turno, como quer Lula, provocam insegurança jurídica e instabilidade, afastam os investidores e prejudicam a economia. Pacheco também externou sua contrariedade com a articulação política do governo por meio de um gesto totalmente incompatível com a sua personalidade. Na última terça-feira, 9, ele não recebeu os ministros Rui Costa, Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Jader Filho (Cidades) durante uma visita-surpresa que eles fizeram ao Senado. Os ministros tinham ido conversar com líderes partidários numa tentativa de evitar que o Senado ratificasse a decisão da Câmara sobre o marco do saneamento. Sem agendar a visita, eles entraram na presidência da Casa para falar com Pacheco, que estava em outro compromisso, e o aguardaram em uma antessala.
Ao saber da presença do trio, o senador saiu apressadamente, sob a alegação de que estava dez minutos atrasado para abrir a sessão plenária. Ele evitou a conversa com uma desculpa esfarrapada e, por isso mesmo, eloquente. No dia anterior, Pacheco tinha ficado insatisfeito com a forma como o Planalto anunciou a indicação de Gabriel Galípolo, secretário-executivo do Ministério da Fazenda, para uma diretoria do Banco Central, cargo que ele só assumirá após ser sabatinado e aprovado pelo Senado. Ninguém do governo informou Pacheco previamente da escolha, o que foi considerado por ele uma descortesia (leia mais na reportagem da pág. 38). A tensão na relação com o Congresso, vale ressaltar, não decorre apenas de erros do presidente e de seus aliados. Como ocorre desde sempre no presidencialismo de coalizão brasileiro, os parlamentares querem contrapartidas para votar com o governo. Lula 3 enfrenta negociações mais custosas porque deputados e senadores conquistaram poder na gestão de Jair Bolsonaro, que repassou a eles o controle das bilionárias emendas de relator. No governo passado, os congressistas tinham total autonomia para decidir onde esses recursos seriam aplicados. O Executivo recebia as indicações e pagava, sem contestação.
Já o governo atual não está disposto a repetir esse modelo, o que levou a um impasse. Saudosos das extintas emendas de relator, os parlamentares querem decidir onde serão aplicados cerca de 10 bilhões de reais que hoje estão à disposição dos ministérios. Pressionado, Lula determinou que essa verba entre na negociação com o Congresso, mas não abriu mão de ter a palavra final sobre o desembolso dos recursos. Sua proposta é que deputados, senadores e prefeitos peçam a liberação das verbas respeitando programas definidos pelos ministérios e normas preestabelecidas. “O governo anterior terceirizou a execução do Orçamento. O Congresso determinava o pagamento, e o Executivo liberava o dinheiro sem saber o que estava pagando”, diz uma fonte do Planalto. De acordo com ele, parlamentares e prefeitos farão a sugestão de gastos dos recursos que estão nos ministérios, mas estes só serão desembolsados caso se enquadrem nos critérios definidos pela equipe do presidente. “Tudo com transparência e dentro da legalidade”, acrescenta a fonte.
Para melhorar a relação com o Congresso, o governo também deve agilizar o pagamento de emendas individuais inscritas no Orçamento de 2023 e de verbas orçamentárias de anos anteriores. Ministérios já foram autorizados a liberar 5 bilhões de reais dos chamados restos a pagar. O dinheiro não está fluindo na velocidade desejada pelos parlamentares, segundo o governo, porque há dificuldades com a burocracia. Sistemas operacionais, por exemplo, ainda dependem de ajustes. Para um petista histórico, com bagagem de sobra nas engrenagens do Planalto, o motivo da demora é diferente. Ele diz que Alexandre Padilha, articulador político e alvo das críticas de Arthur Lira e companhia, fecha os acordos políticos, mas Rui Costa, o capitão do time, não executa o combinado. Um promete, e o outro não cumpre, o que amplifica o azedume parlamentar. Para este petista, foi um erro colocar Costa na Casa Civil, já que ele é um técnico sem trânsito na política e com pouca atuação no Parlamento. Além de ser responsabilizado pela derrota no caso do marco do saneamento, o chefe da Casa Civil gerou atritos com a bancada do União Brasil por tentar mudar o superintendente da Codevasf na Bahia, indicado pelo partido. A temperatura subiu a ponto de a legenda apresentar um requerimento para convocar Costa a se explicar no plenário da Câmara.
O governo reconhece que a lentidão na distribuição de cargos de segundo e terceiro escalões também dificulta a adesão de deputados e senadores à nau governista. Por isso, pretende bater em breve o martelo sobre o destino de 400 postos federais distribuídos pelos estados. “Estamos um mês atrasado nessa questão na comparação com o governo Lula 2”, admite uma fonte do palácio. Todos os ajustes previstos devem melhorar a relação do governo com o Congresso. Historicamente, essas contrapartidas sempre surtiram o efeito desejado. Esse esforço de composição pode ser prejudicado se Lula continuar com discursos populistas em busca de aplausos fáceis e não concentrar energia na pauta que realmente importa: a aprovação do novo arcabouço fiscal e da reforma tributária. Como disse Arthur Lira, o Congresso de centro-direita, liberal, no qual a esquerda é minoritária, apoia essas iniciativas. A janela de oportunidade está escancarada. Basta que o “animal político” pare de sabotar a sua própria agenda.
Com reportagem de Marcela Mattos
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841