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Em meio a críticas e desafios, regularização das bets entra na fase final

Governo corre para tentar resolver falhas em meio a uma forte pressão política e de setores empresariais que se dizem prejudicados

Por Isabella Alonso Panho Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 out 2024, 11h46 - Publicado em 4 out 2024, 06h00

Demorou seis anos para entrar em campo no Brasil a regulamentação das bets, um negócio que prosperou no país durante muito tempo à margem da lei, atingindo um faturamento anual estimado em mais de 200 bilhões de reais, com quase todas as empresas tendo suas matrizes no exterior e consumidores entregues à própria sorte em caso de problemas ou fraudes. A oportunidade de arrecadar uma boa bolada em impostos foi a força motriz por trás do esforço do atual governo federal para enquadrar as empresas. A gestão anterior, de Jair Bolsonaro, sentou em cima da bola, preocupada em não desagradar à bancada evangélica. É inegável o mérito de iniciar o processo para acabar com a terra sem lei que havia no mercado e, nesse sentido, a equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve um papel fundamental. Com o pontapé inicial da partida da necessária regulamentação, no entanto, ficou claro que muitos fatores importantes foram desprezados ou subestimados, como o impacto na saúde dos apostadores e o efeito da jogatina no bolso das famílias. Por isso, nos últimos dias, o que se viu foi uma corrida para tentar resolver falhas em meio a uma forte pressão política e de setores empresariais que se dizem prejudicados.

arte Bets

As polêmicas em torno do negócio foram aumentando à medida que se aproximaram as datas principais do calendário da regulação. Na última terça, 1º, o governo divulgou uma lista com 95 empresas e 199 marcas que estão autorizadas a funcionar. A casa de apostas é quem pede a regularização e pode ter, sob a sua guarda, mais de uma marca e mais de um site, que terá o domínio obrigatório bet.br. As companhias da “lista positiva” são as que deram entrada no processo, comprometendo-se a pagar a outorga de 30 milhões de reais para obter a licença de operação. “Quem pede autorização não quer confusão com o governo”, afirma Magnho José, presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal, entidade que prestou assessoria no processo de regulação. A partir de agora, mais empresas podem engordar a relação das autorizadas a operar: basta cumprir as normas e aguardar até 180 dias pela licença. A Caixa vem se movimentando para entrar no jogo e, caso leve adiante tal determinação, teríamos no país a curiosa situação de um Estado que cuida do regramento ter o banco federal operando no mesmo mercado.

NA MIRA - Bets: a maior parte dos sites sairá do ar nas próximas semanas
NA MIRA – Bets: a maior parte dos sites sairá do ar nas próximas semanas (E+/Getty Images)

Boa parte das que vão continuar no jogo são multinacionais que já participam dos mercados europeu e americano, como a grega Kaizen, dona da Betano, e a britânica Bet365. Ficaram de fora pelo menos 600 sites, que devem ser retirados do ar a partir da próxima semana, o que deve impactar o mercado nacional de marketing esportivo. O motivo disso é que essa lista inclui marcas parceiras de times da primeira divisão do futebol brasileiro, como a Esportes da Sorte, patrocinadora do Corinthians e um dos alvos da investigação que quase colocou o cantor Gusttavo Lima atrás das grades e prendeu a advogada Deolane Bezerra.

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Ao mesmo tempo que foram dados os passos fundamentais para limpar de vez a área, começaram a ficar claros buracos importantes da regulamentação. Um levantamento do Banco Central disparou um sinal de alerta, mostrando que beneficiários do Bolsa Família gastaram 3 bilhões de reais apenas em agosto com a jogatina. Ocorre agora uma discussão dentro do governo sobre formas de bloquear esse uso indevido, algo que deveria ter sido pensado antes. Uma das opções sugeridas pelo presidente Lula é a de cancelar o cheque do benefício a quem fizer apostas. É possível corrigir o rumo nessa questão, mas o estrago político já foi contabilizado. Chovem críticas hoje até da situação, a exemplo da presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que comparou a legalização das bets à abertura das “portas do inferno”.

PAPEL DUPLO - A Caixa: governo atua como regulador e pode também entrar no jogo
PAPEL DUPLO – A Caixa: governo atua como regulador e pode também entrar no jogo (Antônio Machado/Fotoarena/.)

De forma igualmente previsível (ou, ao menos, que deveria ser prevista na etapa da criação das regras), a multiplicação de bets, a propaganda maciça da jogatina e o acesso instantâneo às apostas via internet num país no qual boa parte dos torcedores se entende como ph.D. em fazer prognósticos no futebol são rotas fáceis para aumentos de casos na sociedade de pessoas que desenvolvem compulsão por apostas. A regulamentação obriga as empresas a criarem mecanismos para tentar conter o problema, como a existência de esclarecimentos sobre o jogo responsável nos sites, campanhas educativas, transparência sobre as regras e a possibilidade do apostador de tirar o time de campo a qualquer momento. Trata-se de medidas úteis, mas ainda tímidas demais diante do potencial de estrago do negócio.

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Um dos maiores erros do processo foi justamente o de subestimar o tamanho dessa encrenca. Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, nas 251 reuniões feitas pelo governo para estabelecer o regramento das apostas, só cinco delas tiveram participação de alguém do Ministério da Saúde. Existe um grupo de trabalho conjunto entre membros dessa pasta e os da Fazenda, mas o ministério de Nísia Trindade, questionado por VEJA, não respondeu quem são seus representantes no colegiado ou quais foram as reuniões realizadas. Agora, o governo promete reuniões urgentes para rediscutir pontos da regulamentação com profissionais da Saúde e também de pastas como a do Esporte, que criou uma Secretaria de Apostas Esportivas para encabeçar campanhas sobre o jogo responsável. “A regulação importa, mas ela sozinha não é capaz de mudar a relação das pessoas com o fenômeno”, ressalta a cientista social e docente da UFRJ Mayra Goulart.

Várias novas medidas acabaram sendo anunciadas com um certo ar de improviso após a crescente pressão vinda de diversos setores. Empresários do varejo reclamam que as pessoas estão deixando de consumir com roupas, mercado e farmácia para gastar com apostas. Segundo a Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo, 63% dos apostadores já comprometeram parte da renda com bets. No Congresso, o movimento contrário à legalização ressurgiu com força. Lideranças do PL vão se reunir depois do primeiro turno das eleições para decidir quais serão os pontos de atuação contra o governo no assunto. Alguns já tomaram a frente dos ataques, com medidas mais concretas. O Solidariedade e a Confederação Nacional do Comércio entraram com duas ações declaratórias de inconstitucionalidade pedindo a derrubada da lei das bets no STF. Os casos estão nas mãos do ministro Luiz Fux, que marcou uma audiência pública para novembro. Considerando-se os humores atuais de alguns dos membros do Supremo com relação ao caso, pode ganhar quem apostar em medidas duras vindas da Corte. Na última segunda, 30, a ministra Cármen Lúcia criticou as bets em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, e classificou a atividade como “abuso de um ser humano pelo outro”.

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DEU ERRADO - Bingos na década de 90: sucessão de escândalos e fraudes
DEU ERRADO - Bingos na década de 90: sucessão de escândalos e fraudes (Ricardo Correa//)

É fundamental dissipar o mais cedo possível quaisquer nuvens de insegurança jurídica pairando sobre o negócio, sobretudo agora, quando a bola já começou a rolar por aqui no campo da legalização, com um grande atraso. Esse mercado é regulado há tempos na maior parte do mundo. Na Espanha as bets só podem veicular anúncios de madrugada e cerca de 20% do faturamento é retido em impostos (quase o dobro da fatia que prevê a nova regra brasileira). No Reino Unido, há proibições severas para árbitros, atletas e pessoas ligadas a esportes que façam apostas usando informação privilegiada.

DESVIO - Cartão do Bolsa Família: gastos da ordem de 3 bilhões de reais
DESVIO - Cartão do Bolsa Família: gastos da ordem de 3 bilhões de reais (Lyon Santos/MDS//)
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Para chegar a esse nível de excelência no trato do assunto, além de fazer com urgência os ajustes necessários, o Brasil tem um considerável desafio pela frente no sentido de cumprir o que está estabelecido no regramento. Um dos desafios será o da fiscalização da atividade, de forma a evitar que as bets se transformem em uma nova central de lavagem de dinheiro para o crime organizado. Num passado não muito distante, o país fracassou ao regulamentar os bingos, um mercado muito mais simples, numa época em que gangues como o PCC ainda não representavam ameaça à segurança pública. Uma sucessão de escândalos variados obrigou o governo a voltar atrás após alguns anos. O resultado precisa ser agora bem diferente na aposta da legalização das bets.

Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913

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