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Desbravadores do sabor

Uma nova geração de cozinheiros aperfeiçoa seu talento no exterior e depois volta às suas origens, revolucionando a culinária fora do eixo Rio-São Paulo

Por Fabio Codeço
Atualizado em 14 dez 2018, 07h00 - Publicado em 14 dez 2018, 07h00

Quando se busca boa gastronomia brasileira, o caminho a ser seguido costuma limitar-se ao eixo Rio-­São Paulo. Até o celebrado Guia Michelin, que há quase 120 anos pontifica na atribuição de estrelas aos melhores restaurantes do mundo e que, desde 2015, distribui no Brasil a única edição latino-americana de seu livrinho vermelho, só avalia as cozinhas dessas duas capitais. No entanto, em recantos do litoral e do interior fora desse circuito, uma vigorosa reviravolta gastronômica vem se desenvolvendo nos últimos anos, descortinando um Brasil pouco conhecido pelos próprios brasileiros. No comando das panelas está uma nova geração de chefs que trabalharam em cozinhas estreladas mundo afora e, com a bagagem cheia de referências e técnicas, retornaram a suas raízes com ideias na cabeça e um menu regionalíssimo na mão.

O precursor da tendência foi o paraense Thiago Castanho, que em 2014, com 26 anos, estampou a capa da revista do The New York Times como um dos cozinheiros mais promissores do mundo. Um ano antes, seu restaurante Remanso do Bosque, em Belém, aparecera em 38º lugar no ranking dos cinquenta melhores latino-americanos da revista britânica Restaurant, uma das bíblias do ramo — um feito de proporções amazônicas que equiparou a casa aos estrelados D.O.M., de Alex Atala, em São Paulo, e Olympe, de Claude Troisgros, no Rio. É verdade que a culinária da Amazônia tivera, alguns anos antes, o poderoso empurrão do catalão Ferrán Adrià, um dos maiores chefs do mundo. Em visita a Belém, Adrià proclamou a região um “paraíso culinário”, encantado com a variedade de frutas, a versatilidade da mandioca e o sabor de ervas que nunca tinha visto.

À MODA INDÍGENA – Felipe Schaedler, chef catarinense do Moquém do Banzeiro, em Manaus: o nome da casa vem de uma grelha primitiva usada pelos índios. Um dos pratos típicos que ele revisita (ao lado) é o filé de pirarucu, o peixe gigante de água doce, com tucupi defumado e guarnição de jambu, a folhinha que adormece a boca (Romero Cruz/Rubens Kato/Divulgação)

Neste ano, o mesmo Latin Ameri­ca’s 50 Best apontou a paranaense Manu Buffara, de 34 anos, como a principal promessa da alta gastronomia no continente. Nascida em Maringá, no oeste do estado, Manu cresceu na lavoura do pai, agricultor, estudou na Itália (no Instituto Italiano de Culinária para Estrangeiros, em Turim), trabalhou em um barco de pesca no Alasca e deu expediente em cozinhas renomadas, como a do dinamarquês Noma (quatro vezes eleito o melhor do mundo). De volta, abriu em Curitiba o prestigiado Manu, onde desenvolve a chamada cozinha de terroir, aquela que traduz o espírito da terra, seus ingredientes, seu clima, seus costumes.

Foie gras? Esqueça. Todos os produtos utilizados no Manu vêm de hortas de bairros periféricos, de comunidades pesqueiras do litoral paranaense e do trabalho de cerca de vinte famílias da capital e de municípios vizinhos. Ostras nativas e juçara, o açaí da Mata Atlântica, estão entre os ingredientes ícones de seu cardápio. “Sinceramente, nunca trabalhei para ganhar prêmio, mas acho importante colocar outros estados do Brasil no mapa da gastronomia”, diz a chef, que já inspira conterrâneos a seguir a mesma linha.

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O maior mérito de Castanho, de Manu e de seus colegas Brasil afora é sacudir o baú das tradições culinárias e trazê-las para os dias de hoje. Eles são capazes de brincar com texturas, aproveitar partes do alimento que todo mundo descarta, subverter costumes e dialogar com outras culturas sem perder a própria identidade. “Receitas contam a história de um povo, e esses profissionais estão ajudando a resgatar, de forma criativa, modos de preparo e produtos que estavam se perdendo. Assim vão construindo pontes para as futuras gerações”, observa a escritora Roberta Malta Saldanha, autora do recém-lançado Culinária Brasileira, Muito Prazer, livro que traz mais de 2 000 ingredientes típicos e receitas de 170 profissionais de todos os estados brasileiros.

CRIA DO SERRADO – Ian Baiocchi, chef do Íz e de mais três restaurantes em Goiânia: o cozinheiro de apenas 29 anos dá preferência a ingredientes locais, mas não se prende a tradições. No prato ao lado, a barriga de porco é cozida em baixa temperatura e servida com milho amanteigado e coulis de tomate (Edgard Soares/Divulgação)

O catarinense Felipe Schaedler, de 32 anos, tem a ousadia e o apreço por ingredientes locais dos empreendedores de sua geração, com uma diferença notável: em vez de fincar raízes no Sul, abriu seus restaurantes no meio da floresta, em Manaus (a explicação: quando ele era adolescente, a família se mudou para Itacoatiara, no interior do Amazonas). No Moquém do Banzeiro, inaugurado em 2016, ele mostra uma Amazônia renovada, com pratos autorais preparados com a mais rudimentar técnica de cocção: a brasa — moquém é uma espécie de grelha indígena. A costelinha de tambaqui (um peixe de água doce) vem lambuzada em molho agridoce e ganha sotaque asiático. O típico tucupi, caldo amarelo extraído da mandioca, é defumado e servido com filé de peixe assado em folha de bananeira. Ainda mais surpreendentes são os cogumelos nativos cultivados pelos ianomâmis, um dos focos de sua pesquisa. “Temos muito a aprender com os índios”, diz Schaedler.

Manter a culinária local e, ao mesmo tempo, subverter regras para harmonizá-la com os novos tempos é o mantra desses chefs. “A conexão entre cozinha e território sempre foi celebrada em outros países. Esses cozinheiros perceberam o valor da cultura agregada à gastronomia e estão modificando, de fato, seus locais de origem”, afirma Georges Schnyder, presidente da Slow Food Brasil, ONG criada na Itália para valorizar o alimento de qualidade, a produção sustentável e o prazer de comer.

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MISTURA FINA – Fabrício Lemos, chef do Origem, em Salvador: o surpreendente menu degustação revela uma culinária baiana renovada. Seguindo essa linha, o abarajé (ao lado) é um bolinho frito de massa leve, feito de feijão-fradinho, que mescla dois clássicos locais, o acarajé e o abará, e leva recheio de vatapá (Tomás Rangel/Divulgação)

Fabrício Lemos, de 38 anos, formado pela Le Cordon Bleu da Flórida, com passagem por restaurantes da luxuosa rede de hotéis The Ritz-­Carlton, batizou de Origem seu primeiro restaurante, aberto em 2016, em Salvador (neste mês inaugurou mais um), junto com a mulher, a confeiteira Lisiane Arouca. O surpreendente menu degustação é uma se­quên­cia de catorze pratos que explora os diferentes biomas presentes no estado. Da caatinga vêm o umbu, fruta azedinha que é um dos ingredientes de um drinque de boas-vindas, e o licuri, coquinho de uma palmeira nativa misturado em uma farofa que também leva biribiri, uma espécie de substituto do limão. “São algumas das poucas espécies que conseguem sobreviver lá e sustentam muitas famílias. Se ninguém as consumir, acabarão extintas”, alerta Lemos, que criou um instituto para estudar os ingredientes da Bahia. Ele trabalha no campo, junto ao produtor, desvendando múltiplas aplicações para os produtos e ajudando no seu aperfeiçoamento. “Melhorar a qualidade aumenta o consumo e a cadeia permanece girando”, explica.

O movimento também floresce no árido Centro-Oeste, onde Ian Baiocchi, de apenas 29 anos, comanda quatro casas em Goiânia. Baiocchi trabalhou nos premiados D.O.M. e Maní, de São Paulo, e passou uma temporada na Espanha, onde deu expediente nos celebrados Mugaritz e El Celler de Can Roca. Voltou à capital de ­Goiás para assumir a cozinha do Palácio das Esmeraldas, sede do governo do estado, e em 2015 abriu o contemporâneo Íz, seu primeiro restaurante. Em todos, cria pratos com liberdade de beber em outras fontes culinárias, mas sempre reverenciando os ingredientes do cerrado, como a castanha­-de-baru e a baunilha local (sim, temos a nossa), contribuindo para movimentar a roda da economia sustentável. Em João Pessoa, 78% do que se usa na cozinha do Roccia sai do solo e das águas da Paraíba, e o chef Onildo Rocha, de 40 anos, vai além: o tecido do uniforme dos funcionários, a música e as obras de arte nas paredes também têm DNA paraibano — tudo misturado com muita modernidade. De norte a sul, a nova leva de chefs que exercem sua criatividade em endereços inesperados está seguindo à risca — e com sucesso — o sábio conselho do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910): “Se queres ser universal, começa pintando a tua aldeia”.

Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2018, edição nº 2613

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