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Da censura ao politicamente correto

O coautor de "Roque Santeiro" escreve sobre o estrondoso sucesso da novela que nasceu proibida e chacoalhou horário nobre de um modo que já não se vê

Por Aguinaldo Silva
25 set 2013, 07h40

O país mostra a sua cara

2 de outubro de 1985

“O Brasil real é esse do misticismo e das falcatruas políticas. Acho que os telespectadores estavam cansados de cocotas e surfistas”, dizia Aguinaldo Silva na edição de VEJA que dedicou sua capa à telenovela Roque Santeiro. A reportagem procurava explicar as razões do extraordinário sucesso do folhetim – exibido na faixa das 8 da noite pela Rede Globo – que ele passou a escrever a partir do capítulo 41, depois que Dias Gomes, autor do original, declinou da tarefa, declarando-se exausto para seguir na empreitada. Rondando a casa dos 80% de audiência, ou 60 milhões de espectadores, um recorde absoluto, segundo o Ibope, a trama consagrou os personagens Viúva Porcina, vivida por Regina Duarte, e Sinhozinho Malta, papel de Lima Duarte (Roque era interpretado por José Wilker). A primeira versão da telenovela, de 1975, com Betty Faria no lugar de Regina Duarte e Francisco Cuoco no de José Wilker, fora proibida de ir ao ar pela censura, que vetou a produção na noite de estreia.

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TRECHO: “A notável eficácia de Roque Santeiro (…) não pode ser atribuída apenas à criatividade de Aguinaldo Silva ou de Dias Gomes, ainda que sejam eles os responsáveis por um enredo enxuto, em que todas as ações são imprescindíveis para o andamento da novela. Roque é, antes de mais nada, a conjugação meio mágica do acaso com a máquina de produções da Rede Globo e o talento de uma série de artistas e técnicos, que aparecem na frente e atrás das câmeras. Desde a autoria, a novela é um produto híbrido, que passa por centenas de mãos antes de chegar ao vídeo.”

• Leia a reportagem na íntegra

Bons tempos aqueles em que um capítulo de novela escrito de uma pernada só na máquina de escrever Olivetti portátil – sem direito a correções por parte do autor, mesmo depois de viajar até Brasília e sair das canetadas dos censores quase sempre com alguns cortes – era capaz de mesmerizar o país inteiro. Foi assim com muitas novelas dos anos 1970 e 1980, porém mais que todas o foi com Roque Santeiro (1985), que tive a honra de coescrever e que, em termos de audiência, até hoje é um marco inalcançável.

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Sim, bons tempos aqueles em que o país ainda sujeito aos resquícios da ditadura – pois se mantinha em voga a ameaça dos no comments celebrizados pelo ex-ministro Armando Falcão, para quem tudo o que dissesse respeito à cultura era suspeito – tinha nas novelas de televisão, até hoje vistas como um gênero menor pelos produtores da Grande Arte, sua efetiva e única pausa para respirar. Sua válvula de escape. Se hoje me perguntassem que produto cultural daquela época melhor entendeu a ânsia do povo brasileiro de encontrar quem ouvisse sua voz e falasse por ele, que lhe desse rosto e o representasse, eu diria sem pensar duas vezes: não foi uma peça de teatro, ou um filme, ou um dos romances políticos então perpetrados em cascata. Foi, sim, uma simples novela de televisão. Foi Roque Santeiro.

Claro, digo isso a partir de uma perspectiva de 28 anos. E o que me perguntam não é o que acho agora, mas o que achei na época. Como foi escrever Roque Santeiro, uma novela que não era minha, mas me caiu às mãos e à qual senti que devia dar meu sangue? Como era escrevê-la sabendo que ela se tornara maior e mais real que a vida atribulada das ruas? Por acaso ao escrevê-la eu me sentia imbuído de alguma missão? A resposta a tudo isso pode ser desapontadora.

Roque Santeiro me dava a mesma alegria que dava ao povo. Mas não era nisso que pensava quando, junto com Joaquim Assis e Marcílio Moraes, produzíamos um após outro seus capítulos diários. Eu pensava no que podia acontecer a qualquer momento – os cortes, as proibições, as restrições que resultariam na morte de personagens e tramas e, por fim, o pior de tudo: a proibição de um produto cultural de tamanho alcance e, em sua essência, tão subversivo.

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Sim, a alegria de escrever a novela era menor que o medo. Porém, maior que a alegria e o medo era a própria novela, que saía de nossas máquinas de escrever aos borbotões sem nada que a constrangesse. Houve um momento em que Paulo Ubiratan, diretor-geral de telenovelas da Rede Globo, comentou comigo: “Tenho a impressão de que você acordou de manhã e descobriu que o capítulo se escrevera sozinho durante a noite”.

Roque Santeiro era isto: um vento que provocou um frêmito no país já na noite de estreia, e nas noites seguintes soprou cada vez mais forte. Isso podia ser comprovado facilmente pelo som da vinheta que assinalava o começo e o fim de cada intervalo comercial da novela – a de Roque Santeiro era sublinhada pelo tilintar de uma auréola de santo que ficava sobre o título da novela e lembrava o famoso plim-plim dos intervalos da Rede Globo. Durante a exibição de Roque Santeiro, mal vinha o primeiro toque eu corria para a janela da minha casa em São Conrado, no Rio de Janeiro, e ficava esperando que o som do plim-plim ecoasse na minha rua, no meu bairro, na minha cidade… No país inteiro.

Sim, bons tempos aqueles em que, embora ainda estivesse vívido na memória o som das botas dos militares a ecoar nas madrugadas, apesar da censura tenebrosa e das ameaças de processo por causa do que se dizia, escrevia ou fazia, uma telenovela era capaz de conquistar mentes e corações, dizer às pessoas sobre os seus personagens “estes somos nós!” e, assim, se tornar maior que tudo. Não era assim que eu sentia Roque Santeiro na época, quando a pressão de escrevê-la era só o que contava. Mas é assim que a vejo agora, como o momento mágico que foi, ao dar a um povo sufocado a chance de reconhecer, mesmo que numa obra de ficção, sua própria cara.

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Nenhuma outra das novelas que escrevi me provocou essa arrogante sensação de ser porta-voz dos sentimentos do povo. Nem mesmo Tieta (1989), que foi ainda mais libertária, já que não teve de enfrentar as limitações impostas pela censura. Enquanto esta existia, cada telenovela que estreava era como um salto no abismo, uma queda que podia resultar em consequências extremas, e a proibição de ir ao ar a versão original da própria Roque Santeiro – em plena noite de estreia, em 1975 – foi uma delas.

Mas então havia um grupo de novelistas que tinha um passado e nada temia. Nos últimos tempos, sempre que me lembro de um desses intrépidos novelistas, Alfredo Dias Gomes – autor de O Berço do Herói, a peça de teatro na qual se baseou a história de Roque Santeiro -, eu me divirto a imaginá-lo parodiando a famosa cena de Gloria Swanson no clássico filme Crepúsculo dos Deuses. Alguém diria a Dias Gomes, a propósito dele e dos seus colegas da época: “Vocês eram grandes”. Ao que ele responderia: “Nós continuamos grandes. As novelas é que ficaram pequenas”. E eu acrescentaria que, se as novelas ficaram pequenas, a Cultura Popular não vai além do colarinho no copo da cerveja e a Alta Cultura, gente, onde está? Virou menos que Média Cultura.

Roque Santeiro e outras novelas da época não se conformavam com os limites do gênero, queriam fazer história. Hoje, quando quem as escreve é supostamente livre, quando se pode dizer tudo e tratar dos temas e personagens mais polêmicos, qual a diferença entre uma e outra época? A mesma pergunta vale para os outros gêneros de arte. Hoje não se cria; apenas se entrega uma encomenda, faz-se um produto. Não há censura, mas existem as regras do mercado. Não há censores, mas, tal como a erva daninha, brotam de todos os desvãos os piores deles: os defensores do politicamente correto. Por isso as novelas – assim como os livros, as peças de teatro, as músicas – apenas vêm, vão e logo se confundem umas com as outras.

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Escrever novelas hoje em dia não é uma missão; é apenas mais uma tarefa. Nós, os dinossauros que sobreviveram ao gênero, ainda as escrevemos; porém, o fato é que sabemos: já não é mais o bom combate nem o melhor esforço. Por isso, mesmo correndo o risco de parecer apenas nostálgico, repito: bons tempos aqueles, meus senhores.

Aguinaldo Silva é autor das telenovelas Senhora do Destino e Fina Estampa, entre outras

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