No começo, parecia mais uma das tantas piadas envolvendo o ex-meia da seleção brasileira e do Barcelona. Mais um rolê aleatório do Bruxo, para usar uma expressão recorrente nas redes. Acompanhado do irmão e empresário Roberto de Assis Moreira, Ronaldinho Gaúcho foi detido em Assunção por uso de passaporte falso no dia 4. À primeira vista, apenas um erro inocente, já que para circular pelo país vizinho basta o RG nacional. Uma bola-fora que, no máximo, renderia um processo menor na Justiça e muitos memes na internet. Com o passar dos dias, a prisão de outras nove pessoas, entre elas um empresário de Brasília próximo a um ex-senador, a queda do diretor de Migração e de um secretário do ministro do Interior do Paraguai, e a busca por uma empresária milionária com ligações com a cúpula da política do país, a história picaresca virou um drama. Além do uso de documentos falsos, as autoridades agora estão investigando os irmãos por associação criminosa, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. E nem as fotos que o ex-craque tirou com policiais e membros da Procuradoria, com o seu sorriso simpático e o gesto do hang loose, foram capazes de livrá-lo do “Ronaldinhogate”, como a imprensa paraguaia apelidou o escândalo.
Apesar da tietagem das autoridades, o juiz Mirko Valinotti não estava para brincadeira. Desconsiderou a tese inicial da investigação, que não viu má-fé do ex-jogador, e manteve a prisão dos irmãos. Um novo promotor, Osmar Legal, da Divisão de Lavagem de Dinheiro e Anticorrupção do MP e conhecido por ter prendido políticos corruptos no ano passado, foi escalado para o trabalho, e o clima esquentou de vez. Ele viu conexão do caso com outras investigações abertas pelo governo, entre elas uma da Subsecretaria de Estado de Tributação (a Receita Federal do Paraguai) que apura a movimentação de mais de 10 milhões de dólares nos últimos cinco anos por oito empresas ligadas à milionária Dalia López — a mesma que convidou Ronaldinho a ir ao Paraguai e o recebeu no aeroporto.
Ela é uma espécie de “nova-rica” da região de San Pedro, conhecida pelos altos índices de pobreza e por suas extensas plantações de maconha junto com os estados de Amambay e Canindeyu. Oficialmente, Dalia é dona, junto com o marido, da holding Permanent Oriental. Em seu cadastro, constam atividades como transportes, móveis, equipamentos de computador, educação, impressão e comunicação. Em uma visita ao Senado brasileiro em outubro do ano passado, a empresária se apresentou como uma das “maiores importadoras e exportadoras do Paraguai”. “Mas não disse em que ramo trabalhava. Ela queria fazer uma exposição sobre o Paraguai no Congresso, que acabou não acontecendo”, afirmou o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), líder do governo Bolsonaro no Congresso e presidente da Frente Brasil-Paraguai. Dalia se apresenta também como uma grande filantropa que doa dinheiro a ONGs e times de futebol, além de organizar carreatas pelo país oferecendo serviços médicos aos “povos indígenas e mais carentes”. “O principal negócio dela é vender fretes aéreos a empresas que querem importar mercadorias do Paraguai ou exportar para lá”, disse a VEJA Marcos Estigarribia, advogado de Dalia.
Foi a influência da empresária junto a políticos do país que chamou a atenção das autoridades — há fotos em que ela aparece ao lado do atual presidente, Mario Benítez, o Marito, e do prefeito de Assunção, Óscar Rodriguez. Ao ser questionado sobre o caso, Marito negou conhecê-la e disse que a viu apenas uma vez “num helicóptero mais bonito que o meu”. Em uma entrevista à revista Caras da Argentina, publicada em fevereiro, Dalia não esconde o apreço por sua fortuna: “Gosto de boas roupas, perfumes caros, gastronomia requintada, carro de marca, mas também me satisfaço em dar a mão solidária”. Na mesma ocasião, revelou que tinha o respaldo de “los amigos brasileños”, entre eles o senador Eduardo Gomes, e que iria levar Ronaldinho Gaúcho ao Paraguai como garoto-propaganda da Fundação Fraternidade Angelical para um mutirão da saúde e o lançamento do livro A Vida de um Craque.
Suspeita-se que essas ações serviam de fachada para esconder as reais intenções do grupo. No fim do ano passado, Dalia se encontrou com Ronaldinho Gaúcho na mansão dele no Rio de Janeiro para acertar detalhes sobre os negócios no país vizinho. Em suas andanças por aqui, ela contava com a ajuda de Wilmondes e Paula Lira, o casal que entregou em mãos os passaportes falsos a Ronaldinho e seu irmão. Os dois agiam como intermediários da empresária paraguaia e também estão presos por lá. No ano passado, Wilmondes e Paula abriram uma empresa chamada Brasil Paraguai Investimentos.
À Justiça, eles entregaram mensagens de celular que mostram Dalia comemorando a confecção dos passaportes falsos. “Ele (provavelmente algum funcionário público) vai me entregar os documentos completos”, disse ela. “Wilmondes e Paula estavam em tratativas com a empresária para fazer empreendimentos comerciais no Paraguai e depois viriam o Ronaldinho e o Roberto para dar uma olhada no negócio”, afirmou o advogado do casal, Jorge Kronawetter. Os investigadores querem saber agora que tipo de empreitada essa turma planejava fazer no país. Descobriu-se que os irmãos Assis depositaram cerca de 40 000 reais num banco público do Paraguai para conseguir a cidadania de lá, em janeiro deste ano. Ou seja, eles iniciaram um processo legal para obter os passaportes que lhes permitiriam abrir empresas no país, mas, por algum motivo, optaram pelo caminho mais fácil — e ilegal.
Após pedir a manutenção da prisão dos irmãos Assis por risco de fuga para o Brasil, o procurador Osmar Legal assinalou que eles são suspeitos de “outros crimes”, além do uso de documento falso — os delitos seriam lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Há indícios ainda não confirmados de que a empresária Dalia mantinha um esquema clandestino de câmbio, no qual ela repassava dólares ao Brasil por meio de caminhões que transportavam cigarros para o país. Ronaldinho e Assis estariam firmando com ela um acordo para entrar como sócios no negócio. Os advogados de Ronaldinho negam as irregularidades. Exagerando na ingenuidade de seu cliente, sustentam que ele e o irmão não sabiam que os passaportes eram falsos. Segundo essa versão, eles receberam os documentos como um presente de Dalia. O presidente Marito pediu uma investigação rigorosa dos envolvidos. Do Brasil, o ministro da Justiça, Sergio Moro, ligou para o ministro do Interior do Paraguai, Euclides Acevedo, para solicitar informações sobre o processo — o gesto desagradou às autoridades paraguaias, que o interpretaram como intervenção indevida. Com detenção preventiva decretada por seis meses, os irmãos Assis tentaram mudar o regime para prisão domiciliar, mas o pedido acabou sendo negado no último dia 10. Por isso, continuam em um presídio de segurança máxima em Assunção. A defesa agora entrou com um novo recurso, que deve ser julgado na próxima semana. Foragida, Dalia combinou com a Justiça que irá se apresentar no dia 18.
Embora seja até agora o caso mais grave, não é a primeira vez que a dupla se mete em enrascadas. A lista inclui desde investigação de sonegação fiscal da ONG mantida por eles em Porto Alegre (nesse caso, acabaram inocentados) até o envolvimento de Ronaldinho em uma empresa acusada de promover um esquema de pirâmide financeira. O irmão mais velho é quem cuida dos negócios da família, levando sempre o caçula a seu reboque. Jogador promissor no fim dos anos 80, Assis encerrou precocemente a carreira por causa de contusões e virou “pai” do caçula quando eles ficaram órfãos. Mais tarde, assumiu também o papel de empresário. Um dos craques mais espetaculares da história recente do futebol brasileiro, Ronaldinho foi coadjuvante de luxo do escrete do penta em 2002 e brilhou intensamente no Barcelona, clube pelo qual recebeu o título de melhor jogador do mundo em 2004 e 2005. A fama e a fortuna precoces parecem ter tirado o apetite dele por mais conquistas. Ao mesmo tempo que os lances geniais com a bola escasseavam, a fome de farras e da vida extracampo aumentou, sob o olhar complacente de Assis. Agora, a dupla vai ter de caprichar muito para se livrar da enrascada em que se meteu no Paraguai.
Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678