Com chegada à Netflix prevista para 18 de outubro, o filme A Lavanderia, dirigido por Steven Soderbergh e escrito por um dos roteiristas mais requisitados de Hollywood, Scott Z. Burns, é uma obra-prima. É uma espécie de Relatos Selvagens americano, repleto de desejo de vingança e nervos à flor da pele, em torno da história dos Panama Papers — o vazamento de mais de 10 milhões de documentos com dados de quem fugia das tributações e lavava dinheiro, do cidadão comum ao crime organizado.
O Brasil está no filme, por meio da Odebrecht. O humor é tão apurado que os personagens olham para a câmera e explicam, para não deixar dúvidas: “O diretor tem cinco contas offshore e o roteirista, duas”. Offshore são as contas bancárias em paraísos fiscais, que não são necessariamente ilegais. Muitas vezes é apenas o capital fugindo de tributação ilegítima, mas frequentemente se trata de esconderijo do dinheiro sujo. Essa generalização resulta em manchetes de jornais e revistas, mas interessa sobretudo aos bandidos, ao fazer com que tudo pareça igual — embora não seja, evidentemente.
“Uma virtude dos Estados Unidos: quando um bilionário morre, seu legado financeiro é compartilhado”
O antropólogo israelense Nir Avieli diz que perceber quem prepara comida, serve e come é o primeiro passo para revelar o funcionamento de uma sociedade. Vou roubar esse conceito: rastrear o comportamento de quem paga menos imposto, de quem mais sonega e de quem financia aqueles que determinam as regras tributárias é um atalho para entender a crueldade de uma sociedade. A Lavanderia põe o dedo nessa ferida. Meryl Streep, sempre impecável, aparece no final como Meryl Streep mesmo e, olhos nos olhos, faz um discurso arrebatador sobre como o 1% ultrarrico dos Estados Unidos navega para proteger suas fortunas por meio de brechas legais. Eles conseguem as vantagens — que novidade! — ao financiar políticos. A realidade do pay to play (pague para jogar) constrói um ciclo perpétuo dos ricos ficando cada vez mais ricos sem financiar os benefícios sociais que poderiam garantir a ascensão do terço inferior da pirâmide. Pior, eles ainda manipulam a classe média, vítima desse sistema, para defendê-los, numa síndrome de Estocolmo. Soa familiar? No Brasil é pior.
Nos Estados Unidos o imposto de herança é altíssimo, o que força os bilionários a montar fundações que financiam grandes pesquisas, universidades e museus. O Brasil tem um sistema de tributação regressivo que faz com que os pobres paguem relativamente mais tributo que os mais ricos. E, injustamente, há um imposto de herança baixo. A admiração aos Estados Unidos por parte de alguns brasileiros é oportunista. Eles adoram falar da economia, mas cinicamente não tocam nesta virtude americana: lá, quando um bilionário morre, seu legado financeiro é compartilhado. Afinal, qual mérito há em nascer bilionário?
São muitos os artigos de economistas suplicando ajuste fiscal e da previdência, em nome do combate à desigualdade. Contudo, não se fala em como a guerra às drogas e o baixo imposto de herança contribuem para que os pobres fiquem cada vez mais pobres; e os carros e o coração dos ricos, cada vez mais blindados.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655