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A longa noite no canteiro de buscas

Por Aline Erthal
9 abr 2010, 07h15

Na rótula da Estrada do Viçoso Jardim, a mais de 500 metros do local onde na quarta-feira ocorreu o deslizamento de terra que soterrou cerca de 50 casas no Morro da Bumba, em Niterói, o cheiro é nauseante. A lama escorre pela rua; na calçada, acumulam-se ferros retorcidos e destroços. A fileira de carros de remoção de cadáveres estende-se até quase o sopé do desmoronamento. Ali, o retrato da catástrofe: toneladas de uma mistura de terra, lixo, restos de construções. O tamanho do desabamento é impressionante – uma faixa de cerca de 50 metros de altura de encosta despencou. O barulho seco das máquinas e as fachadas apagadas das casas que restaram, algumas penduradas no barranco, tornam o cenário ainda mais sinistro.

O desastre acumulava, até o fim da madrugada de hoje, 17 corpos, e estima-se que ainda haja 200 vítimas soterradas. Olhos tensos acompanham cada afundar de braço de escavadeira. São dezenas de pessoas que se debruçam sobre grades de isolamento, empenhadas em uma tarefa: ter a certeza de que, junto com a terra, não serão despejados, por engano, corpos nos caminhões. “A cada galho ou entulho maior que aparece, tomamos um susto, tentamos avisar os bombeiros”, conta Daniel Lima, 22 anos, morador das redondezas do bairro Viçoso Jardim.

Passam pessoas oferecendo comida e bebida. São voluntários, muitos completando 24 horas seguidas no local. Gente como Rogéria do Amarante, 36 anos, faxineira, que distribui cafés e sorrisos consoladores. Debaixo das tendas montadas pela Defesa Civil, o que não falta é gente querendo ajudar. O Exército da Salvação mantém 30 pessoas que se revezam no local. Hoje chegam reforços de São Paulo.

O casal Edgar e Sarah Chagas (Ricardo Macedo)“Viemos não só para oferecer alimentos e bebidas. Nós procuramos dar conforto também. Às vezes os bombeiros vêm até aqui muito mais à procura de um descanso reconfortante do que qualquer outra coisa. E temos sempre uma palavra de carinho para eles”, diz Sara Chagas, há mais de 25 anos na organização. Ao seu lado, o marido, major Edgar Chagas, distribui sem cessar sanduíches para as equipes de resgate. Os dois se conheceram na corporação, e o trabalho em dupla torna mais suportáveis missões como a de agora, na tragédia que avança para ser a de maior letalidade do país – já são 182 mortos em todo estado do Rio até o momento.

Às 23h15 de quinta-feira a chuva voltou a apertar, aumentando a apreensão de quem tem medo de voltar para casa. “Moro aqui perto e, depois do que vi, não quero dormir de jeito nenhum. Fico ajudando para não ficar pensando e enlouquecer. A gente sabe que o local é perigoso, mas vai morar onde? Não estamos aqui porque queremos”, desabafa uma mulher.

Paulo Rico e Luciana Gumarães (Ricardo Macedo)Ao lado dela, dois dos muitos heróis que a tragédia revela: Paulo Rico (que ironiza: “é mole, este nome?”), 30 anos, e Luciana Guimarães, 39. Ele, segurança, mora a 400 metros do Morro do Bumba e ouviu quando tudo desmoronou. “Fui um dos primeiros a chegar ao local e não acreditei no que vi. O desespero, a tristeza, aquele lugar irreconhecível. Ouvíamos as vozes pedindo socorro debaixo da terra. Não existe dor igual. Logo nesses primeiros momentos, conseguimos salvar 12 pessoas”, emociona-se. Luciana conta que muitos moradores confundiram o barulho do desmoronamento com tiros. O salão de beleza dela – bem em frente ao morro – é, desde a quarta-feira, ponto de organização e distribuição de mantimentos.

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Quase uma da manhã o movimento de curiosos começa a diminuir. Nenhum outro corpo foi encontrado, nenhuma vítima salva. O trabalho das máquinas não para, e um clima de desesperança se abate sobre todos que acompanham as buscas. Júlio Cesar Monteiro Carvalho e o irmão, Abílio, mantêm os olhos pregados na terra. Parecem não estar ali, atônitos ainda. Esperam notícias do pai, de 77 anos, da irmã, de 48, e do sobrinho, de apenas 6.

“Não dormi, não comi, não sei o que vai acontecer. Eu achava que eles ainda podiam estar vivos. Mas nos orientaram a ir para o IML, e o que vimos foi horrível. As pessoas estão queimadas, não dá para ver como elas eram. Olhei bem e minha família não estava lá; mas não acredito que eles ainda estejam vivos”, conforma-se Júlio. Ele e Abílio são dos poucos parentes que permanecem no local. A maioria foi para abrigos ou para a casa de parentes.

Perto do Morro do Bumba, três igrejas e duas escolas recebem e auxiliam desabrigados. A sala 903 do Colégio Estadual Machado de Assis está sem mesas e cadeiras. Na porta, sapatinhos minúsculos e coloridos amontoam-se: cerca de 15 crianças e quatro adultos dormem ali, enrolados em cobertores, entre sacos de roupas e alguns poucos pertences. Cerca de 160 desabrigados passam a noite na escola, observados com desvelo pelo diretor, Luiz José Rodrigues. Ele tem a ajuda de voluntários, a maioria jovens moradores de Niterói que têm se dedicado a ajudar as vítimas do desastre desde a noite de ontem. “Amanhã vamos organizar grupos de recreação e projeções de filmes para distrair as crianças. Teremos também médicos e enfermeiros” planejam os rapazes.

Da cozinha, vem o cheiro do cachorro-quente, preparado para o café-da-manhã. “Parece mentira, mas tem gente que perdeu a casa e, mesmo assim, vai sair daqui às 6h para trabalhar”, impressiona-se o diretor.

Uma pequena cadela é resgatada com vida pelos bombeiros (Ricardo Macedo)

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Trabalhando, Ricardo dos Santos Loureiro, Comandante Geral do Grupamento de Busca e Salvação (GBS) do Corpo de Bombeiros, passou mais de 24 horas seguidas no local. Como ele, cerca de 120 homens dos Bombeiros atuam na tragédia causada pelas chuvas em Niterói. Loureiro, que chefiou a missão de resgate no Haiti e também trabalhou no desastre de Angra dos Reis, não perde a fé: “A gente sempre tem esperança que possa ter se formado um bolsão de ar ou algo parecido”.

O comandante ressalta a dificuldade no Morro da Bumba: a lama, em alguns pontos, chega a cinco metros de profundidade, e o deslizamento deslocou as casas umas para cima das outras, dificultando a localização e retirada de destroços. Às 2h30, quando o cansaço é visível no rosto de todos – voluntários, policiais, repórteres. Um voluntário, observando o trabalho incansável dos profissionais empenhados no resgate,impressiona-se: “Parecem bonecos”.

“As pessoas às vezes acham que bombeiro é insensível. Bombeiro não é insensível. Temos que fazer um esforço gigantesco para nos controlar, segurar nossa emoção. Para não passar ainda mais apreensão para as famílias. Mas somos homens, ficamos cansados”, desabafa Loureiro. Os bombeiros são humanos, sim. Tão humanos que ainda são capazes de se emocionar com um resgate – mesmo que não seja o que todos gostariam de testemunhar. Às 3h, um grupo comemora, e o cabo Heitor Sabadine desce o morro com um cobertor enrolado: “Uma heroína. Ficou este tempo todo embaixo de quilos de terra e sobreviveu. Uma heroína”.

Nos braços, uma cadelinha. Pequena, imunda, levada às pressas para o hospital de campanha. Uma alegria, suficiente para revigorar as esperanças e energias da equipe. “Depois de encontrarmos tantos corpos, achamos uma vida”, comemoram.

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