De filme teen a Batwoman, mulheres lésbicas conquistam respeito na ficção
Derrocada de estereótipos abre campo para formas mais nobres de retratar personagens LGBTs na televisão
Ellie Chu (Leah Lewis) é uma jovem imigrante chinesa na ficcional e remota cidade Squahamish, em Washington. Sem amigos e precisando de dinheiro para pagar as contas de casa, a tímida protagonista relutantemente concorda em vender sua aptidão para escrita ao pouco inteligente Paul Munsky (Daniel Diemer) e passa a escrever cartas de amor para a menina bonita do colégio, Aster Flores (Alexxis Lemire). Os sentimentos de Ellie rapidamente se somam à trama, e o que começou como um mero ganha-pão se torna a sacada de Você Nem Imagina, recente aposta do catálogo da Netflix. Mesmo com toda a roupagem clássica de um filme teen, ele conta com um diferencial vergonhosamente atrasado: um romance entre duas garotas.
A produção atesta: a forma como personagens lésbicas são retratadas na ficção passa por mudanças notáveis. Muito aquém do legado deixado por Azul É a Cor Mais Quente (2013), o que se vê é que essas personagens invadiram o mamão com açúcar batido de comédias românticas, agora protagonizadas por duas meninas (e um rapaz sobrando). Pode parecer uma aposta boba, mas não é. Você Nem Imagina surfa em uma onda recente, em que personagens do espectro LGBT driblam estereótipos e saltam do lugar de coadjuvantes para o de protagonistas, com tramas simples e comuns ao cinema e à TV, mas dominadas por héteros. Caso até dos populares super-heróis, que ganharam a companhia da estrela de Batwoman, exibida no Brasil pela HBO, a primeira super-heroína lésbica da TV, interpretada pela atriz (que também é gay) Ruby Rose.
Dono de uma Palma de Ouro, estatueta máxima do Festival de Cannes, Azul É A Cor Mais Quente é um bom exemplo de como relacionamentos lésbicos eram retratados até pouco tempo atrás na ficção. Embora tenha sido um dos pioneiros a dar visibilidade ao “L” de LGBT, lado a lado com a série americana Orange is the New Black, o aclamado filme francês e sua famosa cena de sexo de 7 minutos (que demorou dez horas para ser gravada, provocando mais tarde reclamação das atrizes) serviam a um tipo de fetiche masculino muito mais que a uma representação romântica do público-alvo oficial. Daí a – boa – surpresa da chegada de Ellie Chu, que, além de ir na contramão dessa fetichização, nada mais é que uma garota normal, apaixonada em segredo por outra, em uma pequena cidade conservadora: cenário bem mais fértil para provocar identificação. Ellie também não é essencialmente feminina ao ostentar um perene rabo de cavalo baixo e roupas largas. E faz isso sem cair em outro estereótipo batido: o da lésbica “caminhoneira”. São essas as de cabelo curto e estilizado, porte físico forte e trejeitos masculinizados. Até então, o cinema e a TV se amparavam nesta espécie de balança, um “8 ou 80”: a lésbica da ficção ou era atraente ou o completo oposto.
Com a nova tendência, essas mulheres são retratadas num meio termo entre os dois números da escala. Sem cenas acaloradas, mas contemplando a sensualidade feminina, – dessa vez inata da personagem, não da orientação sexual –, a prima de Bruce Wayne, em Batwoman, é “sexy sem ser vulgar” e concilia a fachada de durona com uma vulnerabilidade até exigida quando se trata de heróis e heroínas dos universos da DC e da Marvel. O encaixe entre personagem e atriz foi tanto que, quando Ruby Rose anunciou sua saída da série para a já confirmada segunda temporada, na última terça-feira, 19, seu nome subiu rapidamente para os trending topics do Twitter. A colega de profissão Stephanie Beatriz, conhecida por interpretar Rosa Diaz no sitcom Brooklyn 99, despontou como um dos nomes interessados para substituir a australiana – e, assim como ela, é LGBT.
A abertura que permitiu a chegada destas personagens também abriu espaço para o documentário Secreto e Proibido. Recém-lançado pela Netflix, o longa conta a história de Pat Henschel e a jogadora profissional de beisebol Terry Donahue, juntas desde 1947. Por anos, o casal teve de omitir o status do relacionamento para a família e conhecidos, alternando entre desculpas para não torcer narizes em uma época em que batidas policiais em clubes e bares gays não estavam tão esquecidas da memória. Com sensibilidade e doçura, os diretores Jason Blum (de Corra!) e Ryan Murphy (de American Horror Story e Pose) deram uma guinada para longe do horror e apresentaram a trajetória das duas mulheres, permeada por cartas, fotografias e relatos antigos, sem cair nos velhos estereótipos já citados.
Demorou, mas os produtores de TV e cinema se adaptaram aos novos tempos e estão aprendendo como é tratar com respeito personagens LGBT. Que essa mesma tendência siga para a vida fora das telas – tarefa um pouco mais difícil, mas não impossível.