‘Num’ ou ‘em um’: entrando numa boa discussão
“Prezado Sérgio: no jornal ‘O Globo’ de ontem, o Caetano diz que só ele continua escrevendo ‘num’ e ‘numa’ no Brasil, que as pessoas falam assim, mas na hora de escrever parecem considerar essa contração errada ou feia e preferem ‘em um’ e ‘em uma’. Será verdade? Qual é sua opinião a respeito?” (Cássia Lins) […]
“Prezado Sérgio: no jornal ‘O Globo’ de ontem, o Caetano diz que só ele continua escrevendo ‘num’ e ‘numa’ no Brasil, que as pessoas falam assim, mas na hora de escrever parecem considerar essa contração errada ou feia e preferem ‘em um’ e ‘em uma’. Será verdade? Qual é sua opinião a respeito?” (Cássia Lins)
A consulta é oportuna: lendo ontem o artigo de Caetano Veloso, que me intrigou, eu já tinha pensado em escrever sobre o assunto, mas é provável que acabasse me ocupando de outros temas se não fosse a provocação de Cássia.
Por quê? Será que considero desprezível a questão da contração num/numa? Não creio: nunca subestimo uma discussão sobre a língua, por mais localizada que seja. O que me leva então a supor que esqueceria o assunto se não tivesse recebido a mensagem de Cássia?
Penso um pouco e concluo que, sendo um usuário pesado e consciente de “num” e “numa”, tanto em livros quanto em textos jornalísticos, é provável que eu acabasse negligenciando a questão por considerá-la falsa. Sim, na maior parte das vezes essas contrações – sem serem obrigatórias, claro – me soam mais eufônicas, mais condizentes com o ritmo da frase, além de mais “naturais” e próximas da língua falada. Além disso, existem desde o século XVI e têm a abonação de autores canônicos dos dois lados do oceano. O que resta então para debater?
Penso um pouco mais e encontro a resposta óbvia: o que resta é o fato aparentemente indiscutível de que, de algum tempo para cá, o “num” vem sendo cada vez menos empregado no português brasileiro escrito. Encontro em fóruns da internet a ponderação – que me arrisco a considerar dominante – de que a contração é “informal”, incompatível com textos mais apurados. (Esqueceram de avisar isso a Fernando Pessoa, ou ele não teria iniciado sua excelente tradução de “O corvo” de Poe com este belo e nada informal verso: “Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste…”).
Estaríamos, portanto, diante de um traço geracional: por alguma razão que merece investigação mais profunda, provavelmente vizinha da hipercorreção e ligada à pouca importância da leitura no ensino de português nas escolas, as novas gerações brasileiras estão abandonando o consagrado ‘num’ na hora de escrever. Sou um pouco mais jovem do que Caetano (tenho 51), mas é possível que seja um dos últimos a insistir numa forma condenada.
Não duvido que seja assim. Nesse caso só me resta apregoar aqui no meu canto a fidelidade eterna ao “num” e lamentar o retrocesso cultural que seu abandono representa. Retrocesso? Sim, retrocesso. Sem forçar a barra, e reconhecendo que a língua escrita e a língua falada jamais serão perfeitamente coincidentes em idioma nenhum, acredito que seja progressista trabalhar para encurtar a distância entre elas. Nem sempre isso é possível: existem áreas imensas em que a distância permanecerá inalterada. Mas ampliá-la é andar para trás.
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