Nos despedimos com festa. Na Marquês de Sapucaí, assistimos juntas à sagração da Mangueira. Campeã pela vigésima vez do carnaval do Rio. Entre um chopp e outro, de camarote, Adriana e eu vimos o sol raiar no Sambódromo. O coração cheio de esperança. “Brasil, meu nego, Deixa eu te contar. A história que a história não conta. O avesso do mesmo lugar. Na luta é que a gente se encontra”, cantamos, com a verde e rosa, os heróis da resistência, negros e índios que não saíram nos livros.
Carioca da gema, Fluminense fanática, Mangueira desde menina. Adriana só não gostava de praia. Era seu único contraditório. Chopp, sempre. Samba, barzinho de calçada. Quando podia. Dri viu, radiante, sua Mangueira ovacionada na avenida, madrugada de 10 de março. Voltou à vida cheia de atropelos e preocupações. Menos de 20 dias depois, aos 61 anos, partiu. Assim, de repente.
Tínhamos tanta coisa em comum, 40 anos de convivência, desde Brasília, onde começou sua carreira de arquiteta e nos tornamos grandes amigas. Daquelas que não questionam sua tristeza, ou felicidade, ou sua ideologia. Voltou pro Rio no final dos anos 90, feliz da vida. Amava a cidade, o ar blasé e descontraído do carioca. Não pôde viver longe dela. Adorava ver o mar, passar o reveillon na Lagoa.
Nos últimos tempos, Dri não estava feliz. Menos trabalho, menos dinheiro, mais amargura. Na esperança de dias melhores, participou ativamente da campanha eleitoral de 2018. Anteviu os perigos. Foi incessante e incansável contra Bolsonaro. Tínhamos também isso em comum.
Adriana era mais brigona. Discutia, debatia, respondia. Pesquisava as fake news para desmenti-las. Não deixava acusações sem consequências. Argumentava. Contra argumentava. Não me lembro de ter ofendido alguém, mas arrependeu-se algumas vezes. “Não vale a pena. Virou seita”, dizia. Deprimiu-se com a vitória do atraso. Adoeceu. Andava frágil.
Minha amiga viu pouco do muito que ainda iremos penar nesse governo reacionário, incauto e despreparado. Para o presente. Que dirá para o futuro? Não soube das ordens dadas por Bolsonaro para que as Forças Armadas comemorassem o golpe de 64. E o vídeo que o Palácio do Planalto divulgou na tarde de domingo, 31 de março, dando graças “a Deus” e ao Exército termos “nos livrado do comunismo” em 1964?
No vídeo, um homem não identificado brinca com nossas dores. Fala de tempos de medo e ameaças. “… que os comunistas faziam (…) prendiam e matavam os seus próprios compatriotas… O Brasil lembrou-se (então) que possuía um Exército Nacional e apelou a ele. Foi só aí que a escuridão, graças a Deus, foi passando, passando, e fez-se luz“.
Fez-se sim noite escura e longa, tirania sangrenta, que duraria 21 anos: 434 pessoas mortas ou desaparecidas, assassinatos, perseguição, censura. O Exercito institucionalizou a tortura, o medo e as ameaças nos quarteis, porões da ditadura. E o presidente despótico deu vivas a um dos mais trágicos períodos da recente história do Brasil. Fez questão de reavivar a memória nacional. Vítimas e alfozes.
Não queremos esquecer a tirania de 64, mas aprender com a história que está nos livros. Nos porões. No coração de cada um de nós que tem ódio à ditadura. “Ódio e nojo”, declarou Ulysses Guimarães, ao promulgar a Constituição de 1988.
Adriana teve sorte de não ver ressurgir com força histórias macabras de 64. Teria enlouquecido na internet. Na despedida, teve a Sapucaí como bálsamo. Um pequeno alivio. Um respiro. Tão passageiro. Como a vida.
Mirian Guaraciaba é jornalista, paulista, brasiliense de coração, apaixonada pelo Rio de Janeiro