O “pulmão da maçã”
A riqueza cultural de um lugar é um bem contra os males psicossomáticos. Xingar na Argentina, por exemplo, deveria entrar nas grandes terapias do século.
Outro dia, eu observava, com espanto, uma senhora agarrar o focinho do meu cachorro e dizer: “meu amor, você é um desastre!”. Estava pronta a reagir quando vi que o tratamento “carinhoso” era geral com os cachorros da região. “Coisa mais terrível! Vem cá, filho da putinha!”, dizia ela a outro canino.
Oito anos de Argentina e vou naturalizando certas expressões que são verdadeiras hipérboles. “Eu estou fuzilada!”. “Voltei à minha casa destroçada!”. “Ele me comeu aos beijos!”. No “lunfardo” argentino, dialeto do espanhol a la italiana falado principalmente na capital, nada disso é uma alusão à gravidade, carnificina ou pornografia São expressões corriqueiras que denotam inconformidade com algo simples, como cansaço e um inocente beijo.
A riqueza cultural de um lugar é um bem contra os males psicossomáticos. Xingar na Argentina, por exemplo, deveria entrar nas grandes terapias do século. Tenho certeza de que eles devem adoecer menos. Ninguém guarda algo. Todo mundo é um “boludo” (bobo) e, aparentemente, a mãe e a irmã de todos nasceram na zona. Tudo é um exagero, do descarrego verbal às metáforas do tango.
Tem um poema do escritor argentino Oliverio Girondo que, para mim, empapa a alma desse drama maravilhoso. “Chore jatos. Chore a digestão. Chore o sonho. Chore diante de portas e portões. (….) Abra as torneiras, as comportas do choro. Empape a alma, a camiseta. Inunde as calçadas e os passeios, e salve-se, nadando, em lágrimas. (…) Comemore aniversários da família chorando. Cruze a África chorando”.
Essa lágrima viva está tão entranhada que os argentinos não percebem o quanto a maneira que falam é excessivamente dramática.
Eu pensava em tudo isso quando, ao mudar de apartamento, me deparei com a nova vista de uma varandinha debruçada sobre um vazio, delimitada por edifícios de maneira quadrangular, um “Pulmón de la manzana”. Trata-se de mais uma expressão local que diz respeito a um vácuo criado entre os edifício de maneira a nos permitir olhar um certo espaço vazio. Normalmente, ele é formado pelas costas dos prédios que, acidentalmente, criam um quadrado. A tradução literal é pulmão da maçã, mas “manzana” se refere, nesse caso, a quarteirão. E o pulmão, a que se destina?
Puxei uma cadeira. Ao meu redor, dezenas de janelas se acendiam. No pulmão dessa maçã estavam as cenas cotidianas dessas inúmeras famílias. O interessante é que o que os argentinos chamam de “pulmão do quarteirão”, esse espaço vazio cercado de vida por todos os lados, é conhecido, em muito outros países de língua hispânica, como “coração de quarteirão”. Aqui, aparentemente, ele não bate. Ele respira.
Gabriela G. Antunes é jornalista. Morou nos EUA e Espanha antes de se apaixonar por Buenos Aires. Na cidade, trabalhou no jornal Buenos Aires Herald e hoje é uma das editoras da versão em português do jornal Clarín. Escreve aqui todos os sábados