O livro dos segredos do Copom
No Banco Central, os economistas radicalizaram: deram férias permanentes à linguagem, na tentativa de construção de uma teologia da economia brasileira
“Acho que você foi claro”, ouviu Alan Greenspan, economista que presidiu o Banco Central americano durante 19 anos, de 1987 a 2006. Greenspan devolveu rápido, em fina ironia: “Se eu me fiz claro, você não deve ter me entendido.”
No Banco Central do Brasil os economistas radicalizaram: deram férias permanentes à linguagem. Insistem em se comunicar com a sociedade numa língua-código que, talvez, só alguns deles sejam capazes de decifrar completamente — depois de torturar cada sílaba, naturalmente.
Ontem, a 242ª reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), em Brasília, terminou com um aumento de
1,5 ponto percentual na taxa básica de juros. Não é pouco. Em quatro semanas a taxa passou de 6,25% ao ano para 7,75% anuais.
É uma decisão que sinaliza o rumo (ou a falta dele) da economia, com reflexos diretos na vida das empresas e das pessoas em meio a uma pandemia e às vésperas de um ciclo eleitoral que se anuncia conturbado.
O Banco Central se justificou em nota pública. Explicou tudo, com clareza e objetividade numa frase de apenas 48 palavras: “O Comitê entende que essa decisão reflete seu cenário básico e um balanço de riscos de variância maior do que a usual para a inflação prospectiva e é compatível com a convergência da inflação para as metas no horizonte relevante, que inclui os anos-calendário de 2022 e 2023.”
Admitindo que a linguagem cifrada, adornada com quebra-cabeças estéticos, contém margem de risco suficiente para deixar o leitor pisando em palavras distraído, o BC se deu ao trabalho de acrescentar uma ressalva ainda mais inteligível: “Sem prejuízo de seu objetivo fundamental de assegurar a estabilidade de preços, essa decisão também implica suavização das flutuações do nível de atividade econômica e fomento do pleno emprego.”
É assim há um quarto de século, desde que o Copom foi criado por “circular” (nº 2.698) com poderes extraordinários sobre a economia. A comunicação com a sociedade com base numa língua-código sugere a tentativa de construção de uma teologia da economia brasileira — com tradutores das parábolas do livro dos segredos do Copom espalhados pelo mercado financeiro.
A maioria dos economistas, ensina o professor Antonio Delfim Netto, sonha criar uma “ciência”, construir uma “religião”: uma “ciência econômica” com fundamentos em leis naturais que governam o funcionamento do sistema e, portanto, independentes da história, da geografia, da psicologia etc.
Tempos atrás, na Universidade de São Paulo, dois professores combinaram um almoço. O economista Celso Furtado terminou a conversa com uma plateia de estudantes e foi encontrar o amigo Mário Schenberg, físico, matemático e duas vezes deputado estadual pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB).
A portaria do auditório testemunhou o encontro de dois dos mais influentes pesquisadores do Brasil no século passado.
— Celso, posso fazer uma pergunta?
— Mas é claro, Mário.
— Ouvi e fiquei pensando: esse negócio de economia é ciência mesmo?
Seguiram para o restaurante, morrendo de rir.