A sensibilidade que morreu com Antonio Candido
O legado maior do crítico morto neste 12 de maio está antes em suas finas apreciações literárias do que na sua ideia de literatura nacional
Morreu o maior crítico literário do país, Antonio Candido. O maior, singular, é talvez um exagero, mas a comoção de uma morte recente nos autoriza a hipérbole. Estamos falando do autor de um clássico, Formação da Literatura Brasileira, livro de 1959 que ainda serve de bússola para muitos departamentos de Letras do país. Do crítico pioneiro que reconheceu os talentos de gente como Clarice Lispector e João Antonio, do acadêmico que deixou estudos seminais sobre Machado de Assis, Oswald de Andrade e Graciliano Ramos. Sem dúvida, se não o maior, um dos maiores intelectuais brasileiros – e não só na crítica literária, mas no pensamento mais amplo sobre o Brasil, aquele que herdamos de autores clássicos da geração anterior a Candido, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Para fazer plena justiça ao homem e sua obra, no entanto, será necessário olhar um pouco além dos encômios convencionais. Um crítico só deve ser homenageado com crítica – quando se trata de um grande crítico, afinal, até seus equívocos mostram-se fecundos. É bom ter esse ideal sempre presente quando se fala de uma figura como Antonio Candido, que ainda em vida andava cercado de certa aura reverencial: professor de gerações de alunos célebres, incluindo um ex-presidente da República, o autor de Brigada Ligeira era daquelas figuras que costumam ser chamadas de Mestre, com maiúscula.
Assisti a uma palestra de Antonio Candido em Porto Alegre, lá pelo início dos anos 90, creio. Sua fala, da qual tenho uma lembrança naturalmente imprecisa, me causou uma impressão forte. Estava ali um professor da velha cepa, que quase não se vê mais. Claro e didático sem vulgaridade ou rebaixamento populista, Candido percorreu as linhas básicas da literatura brasileira em uma hora e pouco de aula. Começou dizendo, em tom sereno, que a ideia de “formação”, tal como explicada em seu livro de 1959, estava ultrapassada: uma literatura nacional se faz de forças em conflito, e não se “forma” placidamente pela sucessão de escritores e obras. Estou, claro, parafraseando, e de memória, com todos os riscos de imprecisão e engano que isso comporta. Até onde sei, essa palestra não foi publicada. Tenho até receio de estar imaginando que Candido tenha dito essas coisas, tal é, em certos meios acadêmicos, o caráter totêmico que a tal Formação ganhou. O Mestre terá mesmo revisado aquele que tantos consideram o conceito central de seu pensamento?
A obra que consolidou a fama de Candido dedica-se a entender como se construiu um sistema literário no Brasil, sistema esse que congregaria um conjunto de produtores (vale dizer, escritores), um público leitor consolidado, sem o qual as obras não vivem, e um “mecanismo transmissor” (a linguagem, os estilos literários) que liga autores e leitores. Candido acreditava que esse sistema formou-se entre os séculos XVIII e XIX. A ausência do barroco neste livro deu pano para muita controvérsia acadêmica, sobretudo a partir de O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: o Caso Gregório de Matos, ensaio publicado em 1989 por Haroldo de Campos (que, aliás, foi orientando de Candido em uma tese sobre Macunaíma, de Mario de Andrade). Nome central das vanguardas poéticas da segunda metade do século XX, Haroldo fez do barroco um ponto programático de sua produção tanto teórica quanto literária, daí não engolir bem a ausência de Gregório de Matos no esquema histórico de Candido.
Há uma certa ambivalência nessa obra de Candido, que talvez prejudique sua arquitetura geral. O autor, que vinha da Sociologia, anuncia um estudo sobre como se constituiu o sistema social que permitiu a transmissão e a continuidade de uma tradição literária. No entanto, o força e o encanto de Formação… residem não na sociologia, mas nas análises literárias. Exemplos tomados percorrendo o livro rapidamente:
1 – “…em Tomás Gonzaga, a poesia parece fenômeno mais vivo e autêntico, menos literário do que em Cláudio (Manoel da Costa)“.
2 – “Em Gonçalves Dias, sentimos que o espírito pesa as palavras, em Castro Alves, que as palavras arrastam o espírito na sua força incontida. Situado não apenas cronologicamente entre ambos, Álvares de Azevedo é um misto dos dois processos”.
3 – “Na língua d´O Guarani, ainda há um pouco da deslumbrada facúndia de quem descobre uma fórmula de prosa (…), (o estilo) tem menos densidade lírica do que em Iracema“.
Nos excertos 1 e 2, comparam-se as qualidades de poetas diferentes; no terceiro exemplo, contrapõem-se os estilos de dois romances do mesmo escritor, José de Alencar. É apreciação literária, com a inevitável dose de subjetivismo. Outro recorte, é verdade, poderia facilmente encontrar trechos em que Candido trata apenas do contexto histórico no qual cada um desses autores trabalhou, e é perfeitamente possível (talvez até necessário) fazer boa história literária ao mesmo tempo em que se apreciam os méritos individuais de cada autor. No cômputo final, porém, tenho a impressão de que as ideias de “formação” e “sistema” tendem a se diluir ao longo das 800 páginas do livro.
Há ainda quem leia Formação da Literatura Brasileira como uma espécie de gigantesco preâmbulo para Machado de Assis. O escritor carioca seria o ponto de fuga da obra de Antonio Candido: quase não figura em suas páginas, mas, de fora do quadro, orienta a perspectiva da tela toda. A literatura brasileira, nesse esquema, forma-se em definitivo com Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Não me parece uma ideia consistente: um escritor, ainda que genial, não pode ser, sozinho, um “sistema”. O próprio Candido disse isso, em entrevista de 1995: “O gênio surge até no deserto do Saara. Num Oasis pode surgir uma Homero e fazer uma Odisseia. O gênio é uma coisa, a Literatura é outra coisa”.
Não há referência à “formação” em Esquema de Machado de Assis, ensaio de 1968 recolhido em Vários Escritos (1970). Muito tipicamente, o texto começa com uma nota de cunho histórico-biográfico. Candido ataca o pendor romântico dos críticos que, ao falar de Machado, realçam as mazelas sociais e pessoais do escritor: “cor escura, origem humilde, carreira difícil, humilhações, doença nervosa” (alguém imagina um acadêmico identificado com a esquerda, como sempre foi Candido, publicando algo assim nos dias de hoje, quando a cultura progressista tem na figura da Vítima seu maior fetiche?). Seguem-se páginas de fina análise literária. Candido observa, por exemplo, que os apartes e intromissões do narrador, tão presentes nos livros de Machado, eram um “arcaísmo técnico” nos tempos em que romancistas como Flaubert preconizavam o apagamento do narrador – mas que esse arcaísmo pareceria “bruscamente moderno” aos olhos das vanguardas do século XX. É uma análise certeira, que Candido enuncia de forma cristalina, sem afetação, a ponto de nos parecer que ele está fazendo apenas uma constatação óbvia. Não há nada de óbvio aqui: só a sensibilidade particular de Antonio Candido desvendou esse aspecto de Machado de Assis.
Tal é o legado de um crítico, o dom que só ele tem. Com Antonio Candido, morreu uma forma particular de sensibilidade.
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Toda sensibilidade tem seus limites, e eu diria que o maior limite de Candido era sua fixação na ideia de uma “literatura nacional”. A passagem mais citada (e discutida, e contestada) de Formação da Literatura Brasileira está no prefácio: “A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”. E, adiante: “Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, e não outra, que nos exprime”. Esse irritante “nós” diz respeito, está claro, aos brasileiros em geral. Mas acaso nós, brasileiros, passamos procuração para que os escritores compatriotas nos representem? O brasileiro urbano se sentirá representado em José Lins do Rego? O nordestino se encontra nas páginas de Erico Verissimo? Quem diz que um brasileiro não pode se sentir melhor representado pela poesia do grego Konstaninos Kaváfis, pelas narrativas do checo Franz Kafka ou pelos romances do italiano Dino Buzzati? (Os três autores, a propósito, são tema de ensaios de Candido incluídos no livro O Discurso e a Cidade.)
Nos início de sua carreira acadêmica, Candido escreveu uma monografia sobre o crítico Silvio Romero. Os dois são, em quase tudo, personalidades opostas: Romero era um tipo vitriólico, furibundo, que se comprazia na polêmica mais inflamada; Candido parecia mais avesso à controvérsia, um professor sereno, que conciliava contrários e tinha entre seus admiradores gente das mais diversas inclinações literárias e políticas. Mas Antonio Candido herdou, em certa medida, a preocupação nacionalista de Romero, depurada apenas dos excessos chauvinistas (e do determinismo racial próprio da mentalidade cientificista de Romero).
A sensibilidade de um crítico, no entanto, sobrevive aos equívocos e enganos de sua visão teórica. Não é preciso concordar com a ampla teoria da história professada por Hegel (ou sequer entendê-la) para admirar as apreciações pontuais que o filósofo alemão faz, em sua Estética, das obras de Shakespeare ou Cervantes. Há toda uma coleção de achados críticos na obra de Antonio Candido que não saem tingidos por sua ideia de literatura nacional.
(Isso não vale para todo e qualquer crítico: será bem mais raro encontrar, em Roberto Schwarz, que muitos apontam como herdeiro dileto de Candido, apreciações literárias que sobrevivam a seu grosseiro reducionismo marxista.)
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Nos anos finais, Antonio Candido escrevia pouco. Não era mais um crítico atento à produção das novas gerações. Seu nome aparecia com certa frequência encabeçando abaixo-assinados políticos patrocinados pelo partido de seu coração, o PT. Nestes tempos brutos em que a medida de todas as coisas é a ideologia, prevejo que tal aspecto menor de sua biografia ganhará importância desproporcional. Paciência: não deixou de ser uma escolha do próprio Antonio Candido.
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A epígrafe de Vários Escritos vem de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll: “‘What is the use of a book’, thought Alice, ‘without pictures or conversations?'”.
A escolha dessa frase para abrir uma coletânea de ensaios de crítica é uma mostra, creio eu, da sensibilidade particular de Antonio Candido. Pois uma vida inteira dedicada aos estudos literários talvez não baste para responder à dúvida infantil: para que serve um livro sem figuras ou diálogos?