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Crônicas do mundo tecnológico e ultraconectado de hoje. Por Filipe Vilicic, autor de 'O Clube dos Youtubers' e de 'O Clique de 1 Bilhão de Dólares'.
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O julgamento do racismo do youtuber Julio Cocielo

Outros de seus colegas, como Whindersson Nunes, já mostraram como comentários primitivos (no passado tidos como piadas) não são bem-vindos nas redes sociais

Por Filipe Vilicic Atualizado em 4 jun 2024, 16h39 - Publicado em 4 jul 2018, 15h24

Conheci Julio Cocielo. No momento no qual tivemos mais contato, acompanhei-o por alguns dias, dentre gravações para seu canal Canal Canalha e outros compromissos. O que rendeu esse perfil em VEJA. Aprofundei-me em outros detalhes de sua vida também para a escrita de um livro que está para sair. Seria ele racista?

A polêmica veio à tona nos últimos dias. O estopim foi esse tuíte infeliz de Cocielo (reproduzo como escrito): “mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein”. Mbappé, craque da seleção da França, é negro. A piada de Cocielo foi racista. Ela seguiu uma das linhas típicas do racismo, assim como é com a homofobia, ou com a misoginia (e em definição inspirada pela fala da incrível e poderosa Hannah Gadsby, em seu espetáculo Nanette, disponível na Netflix): apoiou-se de uma condição do outro para humilhá-lo e, daí, tentar tirar humor.

Disso, navegantes das redes sociais resgataram outros tuítes, antigos, do mesmo Cocielo. E também de cunho racista. Exemplos: “Porque o Kinder Ovo é Preto por fora e Branco por dentro?…porque se ele fosse Preto por dentro o brinquedinho seria roubado”

“O Brasil seria mais lindo se não houvesse frescura com piadas racistas. Mas já que é proibido, a única solução é exterminar os negros”

Marcas que patrocinavam Cocielo pularam fora desse barco naufragando. Famosos, a exemplo do casal Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank (pais de Titi, uma menina negra), clamaram por boicote ao Canal Canalha. Cocielo fez um mea culpa que não colou.

A carreira dele só não acabou de vez pelo fato de o garoto contar com acima de 16 milhões (?!?!) de seguidores no YouTube, sendo um dos maiores youtubers do Brasil e dentre os mais influentes com a juventude – ou seja, mesmo que perca a mamata das propagandas, sobrevive muito bem só da audiência de seu canal. Deve ocorrer com ele algo na linha do que acontece com Whindersson Nunes quando este solta alguma piadinha machista – a imagem treme, mas a vida de “digital influencer” continua.

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Costumo balancear as precipitações do tribunal do povo do Facebook. Contudo, seria exagerada a reação às presepadas racistas de Cocielo? Por enquanto, não. Ninguém quer (ufa!) enforcá-lo em praça pública (ou ao menos ainda… e espero que não evolua para as apedrejadas, pro barbarismo, é claro).

Cocielo foi pego em seu próprio jogo. A grande maioria dos youtubers não ganha público pelo talento em atuação, por algum tipo de astúcia, pela qualidade da execução de um ofício específico. Conquista-se a audiência pelo carisma e, como os próprios youtubers (a exemplo de Cocielo) gostam de destacar, sendo “você mesmo”. Claro, vende-se uma ilusão do que se é, do que é esse “você mesmo”. No entanto, é justamente com base na própria reputação e humanidade que se ganha fama e dinheiro na internet. Há exceções. Não é o caso de Cocielo.

Logo, quando ele denuncia suas próprias falhas morais, a exemplo dos dizeres racistas, faz coerência que seja arranhada sua reputação, sendo esta, afinal, sua principal ferramenta de trabalho. Se atraía patrocinadores por ser querido na praça, agora espanta por ter virado algo como o bêbado (reacionário e de piadas atrasadíssimas, da década de 80, quiçá 50) da cidade. Se sempre vendeu quem era ele próprio, o “seja você mesmo no YouTube”, é julgado por quem ele próprio é. Coerente.

Por outro lado, os tuítes antigos (assim como vídeos do passado) de Cocielo evidenciam que o comportamento dele sempre foi nessa linha. E seu YouTube continua com os milhões de fãs. Na internet, há uma penca desses que o defende, justificando com o velho “era só uma piada”.

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Ocorre que Cocielo representa, sim, uma camada enorme da sociedade – parte da qual aposto que planeja votar em Bolsonaro. Uma que valoriza o atraso civilizatório, não o progresso. Que ainda vive nos ares escravocratas de dois séculos atrás, que associa gay a AIDS, que não vê problema em, posicionando-se sozinho num patamar superior na sociedade (o clássico é, novamente como definiu Hannah Gadsby, o do “homem, branco, heterossexual”), humilhar os outros em busca de se valorizar – e tentar tirar uns risos de seus iguais.

Nesse passado, a ótima Gadsby também ensinou em seu show, o que valia em todo o jogo do poder era a reputação do “homem, branco, heterossexual”. Deixavam-se questões morais, como a da faceta humana, sentimental e civilizatória, de lado. Só que o mundo não é mais assim. Ou, melhor, não somente assim. Agora, a humanidade de cada um conta, sim.

Hoje ainda persistem aqueles preconceituosos com falas calcadas em raízes estabelecidas por permissões dadas a todos – como os comediantes – para zoar outros pelo o que eles são, sejam os alvos homossexuais, negros ou mulheres. Prova de que era assim é que não se veem esses mesmos reacionários “zoando” a categoria dos “brancos, homens e heterossexuais”. A graça, na visão desses, é pisar em cima dos mais fracos. E esses são muitos, como provam os que defendem Cocielo.

Porém, há os progressistas. Não se engane, sempre existiram os progressistas, em qualquer momento da humanidade. Como o termo bem define, são aqueles que não querem ficar no passado. Pelo contrário, ambicionam progredir (entendeu o “progressista”?) no processo civilizatório.

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Progressistas como Hannah Gadsby caminham para frente, não para trás. Inventam, recriam, indagam. Hoje, não aceitam mais ataques como os de Cocielo. Pois sabem as consequências gravíssimas do mesmo, como a história já evidenciou em diversas situações.

Propõem, então, o diálogo, com enfrentamento (mas não do tipo violento com o qual se estava acostumado no passado tenebroso). Colocam em xeque a reputação de figuras como a de Cocielo. Em contrapartida, apresentam novas formas de progredir, de andar para frente. No caso de Hannah Gadsby, de como fazer comédia de forma engraçadíssima, respeitosa, poderosa, instigante, reflexiva, ousada. Enfim, de como tecer uma arte condizente com os anseios, desejos, as dúvidas, as entranhas, deste século XXI.

Vide bem, vale frisar, no caso de Cocielo não se entra no ponto de separar ou não o artista da arte. Ele não faz arte. Não é artista. Repito, ele vive, ganha fama, lucra, apenas em cima do “você mesmo”. É uma celebridade (famosíssima), representante do atraso civilizatório. E só.

Porém, caso ele quisesse aprender o que é o bom humor hoje, como fazê-lo, e por que piadas como as de seus tuítes não representam mais o progresso… seria recomendável que assistisse a Hannah Gadsby. Tá no Netflix. Veja lá. Assim, na próxima, talvez não passe tamanho vexame online. E, quem sabe, pode ser que sirva de motivação para se tornar um humorista moderno. Não tão-somente um digital influencer.

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