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Por que a cerveja pode ser a próxima vítima do aquecimento global

Depois de provocar estragos à indústria do azeite e do vinho, os efeitos das mudanças climáticas agora se fazem notar nas plantações de lúpulo

Por Caio Saad 28 jan 2024, 08h00

As mais antigas evidências da existência da mistura de água com cereais fermentados a partir de levedura são de nove milênios antes de Cristo — uma bebida à época já muito apreciada e que, assim, foi passando de uma civilização a outra. A história relata que esta que seria a base da cerveja tal qual conhecemos era tão popular que os sumérios, em 3000 a.C., ingeriam até um litro do líquido, enquanto louvavam a deusa Ninkasi, nascida daquela “água brilhante”. Milhões de goles depois, os monastérios medievais da Europa não só padronizaram a receita, que saltou do boca a boca para o registro em papel, como adicionaram a ela um ingrediente que mudaria tudo — o lúpulo, planta do tipo trepadeira que confere o tão valorizado amargor. Pois agora justo esse item tão indispensável a esta hoje bilionária indústria anda penando com os efeitos do implacável aquecimento global, prejudicado pelas secas e elevadas temperaturas em meio à acelerada mudança climática. E o resultado no copo pode vir, num futuro não tão distante, a decepcionar a turma cervejeira.

Depois de se fazer sentir na produção de vinho, azeite e até trufas, rareando a oferta, os termômetros inclementes já começaram a incidir sobre as plantações de lúpulo, a maioria na Europa, e elas devem apresentar um declínio nos próximos anos. Um grupo de pesquisadores da Academia Tcheca de Ciências (país no topo da produção) e da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, formaram uma força-tarefa para investigar a extensão do fenômeno. Conclusão: a seguir o ritmo atual, até 2050 haverá quase 20% menos lúpulo à disposição no planeta, o que afetará torneiras mundo afora. “O lúpulo europeu abastece todo o mercado de cerveja”, falou a VEJA o tcheco Martin Možný, um dos autores do estudo. O levantamento, recém-publicado na revista científica Nature, enfatiza que o resultado final pode levar a uma perceptível alteração no sabor — e no preço.

CIÊNCIA EM AÇÃO - Manipulação genética: busca por amostras resistentes
CIÊNCIA EM AÇÃO - Manipulação genética: busca por amostras resistentes (Carlsberg Breweries A/S/.)

As adversas condições climáticas já estão reduzindo os níveis de ácido alfa do lúpulo, que é o que lhe dá o amargor. Projeções indicam que essa diminuição tende a oscilar entre 20% e 30%, o que forçará as empresas a utilizarem mais quantidade da planta para alcançar o mesmo efeito. Na prática, portanto, ou as cifras subirão, de modo a preservar o padrão, ou ficarão semelhantes, mas com o gosto comprometido, sem aquilo que o faz peculiar. “O impacto do aquecimento global está se tornando aparente e será muito difícil manter o preço globalmente”, explicou em nota a Barth­Haas, uma distribuidora alemã de lúpulo, que já averiguou um encolhimento na produção de ácido alfa em algumas safras recentes.

Diante do cenário que se delineia, a ciência entrou em cena para tentar reverter projeções que preocupam produtores e consumidores. Uma das empresas globais que vem investindo pesadamente em pesquisa, a gigante dinamarquesa Carlsberg, aposta na trilha da genética: no ano passado, especialistas sequenciaram todo o genoma do lúpulo para compreender no detalhe como poderia se amoldar para driblar os novos desafios climáticos. Atualmente, as fábricas dependem de fornecedores do lúpulo, já que há décadas a companhia desistiu de ter plantação própria. “Acredito que a ciência e a inovação irão revolucionar o setor, ensinando a lidar com os extremos do clima”, afirmou Birgitte Skad­hauge, diretora da divisão de pesquisas da Carlsberg. “Tudo indica que os genes podem nos ajudar a criar plantas mais robustas para a feitura da cerveja”, diz. Na Alemanha, que se notabiliza pelas ótimas cervejas, a Associação de Cervejarias da Baviera toca um projeto com o sugestivo nome de Hércules, cujo objetivo é criar uma variedade de lúpulo mais forte e resistente a pragas e aos humores do clima.

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Outra frente de investigação vai numa direção que causaria arrepios aos monges que tratavam cerveja como arte: a ideia é fazer experimentos com leveduras geneticamente modificadas das quais se poderiam extrair compostos com sabor de lúpulo — sem nada da planta original. O grupo Heineken é um dos grandes do mercado envolvido em testes dessa natureza em empresas menores sob seu guarda-chuva, como a Lagunitas Brewing, na Califórnia. Terceira bebida mais consumida do planeta — com 192 milhões de quilolitros ingeridos todo ano nos cinco continentes, o equivalente a 75 000 piscinas olímpicas cheias —, a cerveja só fica atrás da água e do chá. E os brasileiros são entusiasmados adeptos, perdendo apenas para chineses e americanos (veja no quadro), que também aparecem no rol dos campeões em produção de lúpulo. “Nossa pesquisa é enfática sobre os riscos de o aquecimento provocar alterações nesta bebida tão popular”, diz Miroslav Trnka, autor do estudo divulgado pela Nature. “É preciso se mexer para preservá-la.” Isso sem deixar, é claro, de tomar urgentes medidas para zelar pelo próprio planeta.

Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877

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