#39 A INFÂNCIA: Meninice abreviada
Sobrecarregadas de atividades impostas pelos pais, as crianças têm se transformado em miniadultos. As consequências são alarmantes. A saída é brincar
“Na sociedade medieval, a consciência da particularidade infantil, que distingue essencialmente a criança do adulto, não existia”, atesta o historiador francês Phillipe Ariès no clássico História Social da Criança e da Família (1960). Assim, a ideia de infância se constituía pelo negativo, por aquilo que a criança (ainda) não era ou não fazia — basta lembrar que o próprio termo “infância” vem da expressão latina “infans”, que significa “aquele que não fala”. Até a Idade Média, tão logo o infante adquiria condições “de viver sem a solicitude de sua mãe ou de sua ama, ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais deles”, explica Ariès. A criança não passava, então, de um adulto em miniatura.
Foi somente na Idade Moderna que essa visão começou a ser modificada. O culto da “inocência infantil” e uma atenção maior à saúde da criança, verificados nos séculos XVII e XVIII, tiveram papel fundamental em tal transformação — consolidada nos séculos XIX e XX, com os avanços da psicologia do desenvolvimento e da psicanálise, que consagrariam o entendimento de que a criança tem, sim, particularidades que a distinguem essencialmente do adulto. Esse conceito persistiu por décadas. Ultimamente, porém, a noção de miniadulto voltou a assombrar a infância. O motivo: a enxurrada de atividades extracurriculares imposta à garotada.
“Meninos e meninas têm agora uma rotina tão corrida que parecem CEOs de multinacionais”, diz a educadora Tania Zagury. O excesso de obrigações é uma determinação dos pais, que querem preparar melhor os filhos. As consequências podem ser danosas. Hoje, chama atenção o número de crianças que tomam medicação à base de cloridrato de metilfenidato — como a Ritalina —, uma substância estimulante. Em geral, a droga é prescrita quando os pequenos apresentam dificuldade de concentração. Contudo, distração e impaciência são notadas com maior frequência em meninas e meninos obrigados a fazer algo que não lhes interessa — uma atividade extracurricular, por exemplo. “Há uma confusão entre a hiperatividade, que pode ser um distúrbio, e o fato de a criança ser apenas sapeca”, diz Tania Zagury.
Nesse cenário, que mistura esforço, angústia e gastos financeiros, “os adultos esquecem que a brincadeira faz parte da formação de uma pessoa saudável”, constata a psicanalista Ada Morgenstern, do Instituto Sedes Sapientiae. Eis a razão pela qual, recentemente, a Sociedade Americana de Pediatria recomendou aos médicos prescrever — sim, prescrever! — brincadeiras. Na hora da diversão, a presença dos pais é bem-vinda — desde que seja para valer. “Não adianta ficar com a garotada dando likes no Instagram das amigas”, observa a psicóloga mineira Beatriz Velloso, mãe dos gêmeos Lucas e Pedro, de 3 anos e meio. É preciso ser adulto e criança para não criar, de novo, gerações de miniadultos.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601