Poucas décadas atrás, a ideia de abrir portas, desbloquear aparelhos e acessar eventos por meio da leitura das características do rosto pareceria coisa de ficção científica. Soava como quimera inalcançável. Hoje, porém, a tecnologia de reconhecimento facial avança com vigor por diversos setores da vida cotidiana, de forma inexorável e muito bem-vinda. As câmeras monitoram a circulação de pessoas em prédios, ruas e estádios de futebol.
Nos campos esportivos, é iniciativa que evita o uso irregular de cartões, emprestados a amigos e familiares ou corrompidos pela sanha dos cambistas. Só entra quem mostra a cara. “É atalho para que os torcedores tenham uma experiência mais rápida e conveniente”, diz Tironi Paz, executivo-chefe da Imply, empresa de controle de acessos em palcos como a Arena MRV, do Atlético-MG; o Beira-Rio, do Internacional de Porto Alegre; a Ligga Arena, do Athletico-PR e o Estádio São Januário, do Vasco da Gama. Outro espaço já com o recurso é a Arena Pantanal, em Cuiabá.
Um outro efeito paralelo — e positivo — é a identificação de criminosos que tentam atravessar as catracas como se não tivessem contas a prestar para a Justiça. Uma parceria da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo com o Allianz Parque, do Palmeiras, resultou na prisão de 28 suspeitos que tentaram assistir a quatro partidas do time em 2024. Um dos detidos era procurado por tráfico internacional de drogas — estava foragido desde março de 2020. Relembre-se que a Lei Geral do Esporte, de 2023, determina a implementação do monitoramento biométrico em recintos esportivos com capacidade para mais de 20 000 pessoas em até dois anos. “Ao tornar o estádio mais seguro, teremos mais famílias, maior média de público e, consequentemente, maior consumo e faturamento”, diz Victor Grunberg, vice-presidente do Internacional.
Deve-se celebrar a iniciativa. Convém, contudo, não esquecer dos efeitos indesejados que podem provocar — e da forçosa discussão ética alimentada pelo inteligente recurso. Hoje, no Brasil, cerca de 72 milhões de pessoas estão potencialmente sob vigilância de câmeras de reconhecimento facial na segurança pública (veja no quadro). É ideia que faz as pessoas andarem com mais tranquilidade, embora não seja imune a erros. O personal trainer João Antônio Trindade foi detido no intervalo do jogo entre Confiança e Sergipe na Arena Batistão, em Aracaju. O torcedor foi confundido com um criminoso depois de passar pelo compulsório reconhecimento eletrônico. Seria liberado em seguida.
A extensão da tecnologia é inegável. Até 2028, a expectativa é de um crescimento acelerado, atingindo cifras de 12,6 bilhões de dólares em investimentos, em todo o mundo (pelo menos 48 países a usam maciçamente). É natural, portanto, dada a novidade, que surgissem dores do parto. A principal crítica cutuca um certo “preconceito algorítmico”. A taxa de identificação bem-sucedida é imensa entre homens brancos, segundo os estudos. Contudo, o patamar de erro chega a 35% ao trabalhar com as faces de mulheres negras, em distorção inaceitável. A disparidade cria um ambiente propício para discriminação. Um levantamento feito pela Rede de Observatórios da Segurança analisou as prisões feitas a partir da biometria facial e apontou que 90% dos reconhecimentos resultantes em detenção no Brasil foram de pessoas negras. “Temos visto movimentos contrários à adoção e até mesmo banimentos de uso no hemisfério norte, daí o crescimento do negócio em outras regiões”, diz Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (CESeC).
Países como Bélgica e Luxemburgo não autorizam o uso de reconhecimento facial para o monitoramento de seus cidadãos. Nos Estados Unidos, cidades como São Francisco e Boston também baniram instalações desse tipo. Na China, país em que a ferramenta chegou a ser usada para controle da população durante o período mais fechado da pandemia de covid-19, com sucessivas denúncias de invasão de privacidade e falta de consentimento, brotam leis de controle, em passo necessário — é cuidado que não impede o extraordinário crescimento de uma empresa como a SenseTime, de Hong Kong, a campeã do mundo no negócio, que foi barrada nos Estados Unidos por suposta violação de direitos humanos. O tema, aliás, será ruidoso durante a Olimpíada de Paris, com a inteligência artificial atrelada a imagens, de modo a evitar problemas de segurança. Não há dúvida: a vigilância, dentro de normas morais, aprovadas pela sociedade, é crucial. Trata-se de avançar com cautela, ao equilibrar inovação com responsabilidade.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890