Escrito durante a dinastia Ming (1368-1644), Jornada ao Oeste é o clássico por excelência da literatura chinesa. Dividido em 100 capítulos, o caudaloso romance cômico do poeta Wu Cheng’en conta a história da peregrinação do monge budista Xuanzang (602-664) à Índia para resgatar textos sagrados, com elementos de fantasia e magia. Entre os personagens mais emblemáticos da narrativa está Sun Wukong, o Rei Macaco, mistura de homem e símio que causa estragos por onde passa com seu jeito travesso e poderes desmedidos. O mais talentoso dos discípulos do mestre é capaz de viajar pelas nuvens e assumir 72 formas diferentes. Ele inspirou óperas e produtos da cultura pop como o simpático Son Goku do mangá Dragon Ball e, agora, protagoniza um jogo que surpreendeu a indústria mundial dos videogames com um visual fascinante e combates épicos.
Desenvolvido na China ao longo de seis anos, Black Myth: Wukong foi lançado mundialmente em 20 de agosto — já vendeu mais de 18 milhões de cópias, tornando-se um fenômeno instantâneo comparável a títulos populares como Elden Ring e Zelda. Em um país dominado pelo entretenimento para smartphones, a desenvolvedora Game Science apostou numa diversão eletrônica dominada por ação com pegada de role-playing game (RPG), formato no qual os jogadores assumem o papel de personagens em um mundo fictício, cultivam suas habilidades e enfrentam desafios para avançar na história. Analistas de mercado estimam que a empresa tenha arrecadado 700 milhões de dólares até agora, ficando a pouca distância do histórico 1 bilhão de dólares amealhado há dois anos pela Activision Blizzard pelas vendas de Call of Duty no prazo de apenas dez dias.
Black Myth: Wukong é o que os iniciados chamam de jogo triple A ou AAA, título desenvolvido por grandes estúdios com orçamentos generosos, tanto para produção quanto para marketing — neste caso, algo em torno de 70 milhões dólares —, e que geralmente busca alcançar o maior público possível. É o equivalente, no cinema, ao familiar blockbuster, o filme de orçamento milionário que de cara alcança nas bilheterias os valores de produção. Direto ao ponto: a China entrou no jogo, e adeus à ideia perene de produtos piratas, cópias do que é feito no Ocidente — embora, ressalve-se, o sucesso oriental esteja atrelado a uma postura protecionista dentro de casa: a proibição de vendas de consoles como Xbox e PlayStation no país por mais de uma década no início dos anos 2000, atalho para forçar o desenvolvimento de tecnologias locais, ao fechar as portar para o mundo.
Apesar de algumas questões de design que podem ser aprimoradas, como a presença de paredes invisíveis e possíveis problemas de balanceamento, o videogame tem atraído jogadores por vários aspectos positivos, como sua beleza visual e o forte laço cultural. “É muito bem-feito, com uma parte cinematográfica e de câmera impressionante, realmente no nível do que há de melhor no mercado internacional”, diz Reinaldo Ramos, vice-coordenador do curso de jogos digitais da PUC-SP. “A China demonstra ter capacidade de desenvolver jogos de altíssima qualidade, quebrando a hegemonia euro-americana.” É bolo grande, em um mercado mundial de algo em torno de 184 bilhões de dólares, que tem crescido em torno de 7% ao ano. É faturamento duas vezes mais robusto que o de Hollywood. Os americanos ainda lideram, mas, com fenômenos como Black Myth: Wukong, os chineses crescem e aparecem (veja o quadro), com potencial de cerca de 700 milhões de usuários.
Para conquistá-los, os desenvolvedores trataram de beber da cultura local, modo de conversar com adolescentes e adultos ansiosos por brincar de mãos dadas com a história do país, na contramão das invenções importadas. Parece ter dado certo, com um triste adendo emoldurado por censura: dias antes do lançamento, vazou um documento segundo o qual alguns temas foram vetados, como eventuais referências à covid-19 e a supostas “propagandas feministas”. E dá-lhe a China sendo a China, ao ocupar espaços, como fez no campo dos automóveis. E há, ressalve-se, imenso espaço de crescimento, tanto de consumo interno e externo quanto de envolvimento de programadores.
Na construção do novíssimo game — trabalhado com um software de código semiaberto, de uma empresa americana, em aceno ao passado industrial chinês —, foram envolvidas 150 pessoas, muito pouco comparado à turma de 500 profissionais, em sua maioria jovens imberbes, que a francesa Ubisoft põe para labutar em um jogo da franquia Assassin’s Creed. Tudo somado, vive-se agora uma era revolucionária. A China definitivamente não está para brincadeira.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2024, edição nº 2910