A busca incessante da humanidade por quebrar a barreira dos idiomas foi retratada em diversas obras, a começar pela mais famosa de todos os tempos. Segundo o Gênesis do Velho Testamento, as religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) acreditavam que todas as línguas derivaram de um episódio retratado na Bíblia: a Torre de Babel. Há pouco mais de um século, o médico polonês Lázaro Zamenhof (1859-1917) formulou o que seria uma língua universal, o esperanto. A ideia não vingou e nem mesmo o inglês, que por razões geopolíticas, econômicas e culturais se impôs como o mais abrangente, chega a todos os lugares. Segundo o instituto cultural British Council, apenas 5% da população brasileira fala a língua de Shakespeare, e só 1% de forma fluente. Nesse contexto, as tecnologias de inteligência artificial (IA) surgiram como um alento. Em 2006, o Google lançou o Google Tradutor. Outras invenções, como o iLi, um colar japonês de tradução off-line, e o Megahonyaku, um megafone da Panasonic voltado para o transporte público de Tóquio, vieram logo atrás. Mas as reclamações costumavam ser as mesmas: o serviço é útil para ações cotidianas como pedir um táxi, mas ineficientes para atividades complexas como a versão de um documento para outra língua.
Agora, um lançamento põe um pouco mais de esperança na Babel humana. É o caso do fone de ouvido que ilustra esta página. Ele parece um aparelho comum, desses encontrados em lojas de eletrônicos, mas vai além disso — pelo menos, a promessa é essa. Trata-se do Timekettle WT2 Edge, um fone sem fio que, segundo o fabricante, é o primeiro a oferecer tradução simultânea bidirecional, quando os dois interlocutores falam e escutam o conteúdo na língua que desejarem. Para conferir tal façanha, o usuário deve baixar o aplicativo disponível para Android e iOS, determinar os idiomas de entrada e saída, compartilhar um dos fones com a outra pessoa — uma prática ainda não recomendável em tempos de pandemia — e iniciar a conversa.
Em sua versão on-line, o dispositivo da startup sino-americana Timekettle traduz conversas em quarenta idiomas — incluindo o português — e 93 dialetos, cobrindo quase 85% da população mundial. A empresa garante ter precisão de 95% na tradução inglês-chinês e ao menos 80% em outras combinações (aí que mora o perigo). O modelo é equipado com tecnologia de redução de ruídos e permite que uma pessoa continue falando mesmo enquanto a tradução está ocorrendo. Outra promessa é que a conversão de línguas leva apenas de 0,5 a 3 segundos. “Se o serviço falhar ou demorar muito, as pessoas não vão usar”, reconhece Kazaf Ye, chefe de marketing da Timekettle, em entrevista na sede da empresa, em Shenzhen, na China. Empolgada com o sucesso da empreitada até aqui, a empresa quer incluir o tradutor em situações mais complexas, como uma reunião de negócios ou uma paquera mais promissora. Disponível para compras pela internet, o produto custa 109 dólares, com frete de 10 dólares para o Brasil (equivalente a 650 reais no total) — e entregas previstas para abril.
A novidade é bem-vinda, mas ainda é cedo para decretar o fim dos tradutores humanos ou do interesse das pessoas em aprender novas línguas. Mesmo assim, o notável desenvolvimento dos aplicativos já permite questionar a real necessidade de alguém se tornar um poliglota nas próximas décadas. Quando o Google Tradutor surgiu, o processo era estatístico, semelhante a uma consulta ao dicionário. O computador cruzava dados e buscava o equivalente mais recorrente na língua a ser traduzida. Tal método ocasionava constantes erros de concordância e gerava frases sem sentido, especialmente em casos de palavras homônimas como “rio”, que tanto pode funcionar como verbo ou substantivo em português, ou de múltiplos sentidos, como hard (difícil ou rígido), em inglês. O contexto das conversas, portanto, era ignorado até que, em 2016, o tradutor mudou seu modelo para o chamado sistema neural, que trabalha com aprendizagem de máquina. As informações são computadas como se fossem neurônios artificiais, simulando o aprendizado humano. “A análise é feita em dois sentidos e abrange a sentença, não mais uma única palavra, o que acabou melhorando a fluência e a adequação”, diz Helena Caseli, doutora em ciência da computação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
O fato de as línguas serem vivas, com o constante surgimento de palavras (leia a reportagem na pág. 80), impossibilita uma tradução artificial 100% infalível, mas confirma que os algoritmos são cada vez mais capazes de considerar variáveis como as distintas entonações. De certa forma, os recentes lançamentos remetem a outra obra literária, O Guia do Mochileiro das Galáxias (1979), de Douglas Adams, clássico da cultura nerd adaptado para o cinema em 2005, no qual um tipo de peixe, o Babel — a referência é óbvia—, era introduzido no ouvido dos viajantes cósmicos, de modo que pudessem compreender todas as línguas do universo. Resta saber em quanto tempo a vida imitará a arte.
Publicado em VEJA de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726
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