Há cerca de um ano, o web designer Diego Turco, de 32 anos, que vive em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, percebeu que tem problemas com jogo. Seu vício consiste em abrir compulsivamente no smartphone o game finlandês de estratégia Clash Royale e, entre as partidas, sacar várias vezes o cartão de crédito para comprar as chamadas loot boxes (caixas de recompensa) — baús virtuais que trazem, eventualmente, itens capazes de garantir vantagens na disputa. O problema: como em um jogo de azar, poucas vezes a caixa contém algo que realmente ajuda. Os valores são variados — 8 reais em média. Ao dedicar horas ao game, Turco já investiu 1 100 reais na brincadeira. “Os gastos que teria saindo de casa para me divertir eu converto em compras no jogo”, admite ele.
O Clash Royale não é o único nem foi o primeiro game do gênero loot box. A modalidade se popularizou no Ocidente em 2010 com o Team Fortress. Sua estratégia: é possível baixá-lo gratuitamente no celular, mas o jogador gasta dinheiro para tentar adquirir “recompensas” nas “caixas”. O problema não está na compra, e sim no fato de não ser possível saber o que se ganhará com a despesa efetuada. Em uma tradução para o mundo real, esse tipo de game virtual funciona exatamente como os caça-níqueis. E, como eles, pode viciar. “Hoje tenho noção de que uma sensação incontrolável me coloca em um círculo vicioso com o objetivo de conquistar os prêmios”, diz Diogo Turco. “Sofro até ataques de arritmia cardíaca ao jogar. Preciso abrir baús em horas determinadas para ver se vem o item que quero”, relata. O vício de Turco — e de milhões de jogadores mundo afora — garante ao mercado de loot boxes um ganho extraordinário: avalia-se que gire em torno de 30 bilhões de dólares por ano.
A vocação viciante desse gênero de jogo está longe de ser mera impressão. Uma pesquisa realizada no ano passado pelo governo australiano, que analisou o perfil psicológico de 7 000 praticantes, concluiu que as loot boxes têm as mesmas características das roletas, por exemplo. Segundo o estudo, o hábito de jogar tais games pode levar ao vício e ser “uma droga de entrada para o mundo das apostas”.
Há uma agravante. Enquanto nos cassinos só são permitidos adultos, o universo dos games é também povoado por crianças. Um caso emblemático ocorreu em 2018 no País de Gales — e disparou o alarme da comunidade europeia. O garotinho Jayden-Lee, de 10 anos, gastou o equivalente a 6 000 reais com extras do game americano Fortnite, que conta com 200 milhões de adeptos. Evidentemente, o dinheiro não era dele: saíra do cartão de crédito da mãe, Cleo Duckett. Portadora de sequelas de poliomielite — ela anda de cadeira de rodas —, Cleo zerou sua conta bancária para cobrir a fatura e precarizou seus cuidados com a saúde. A história de Jayden-Lee causou comoção e foi uma das motivações para que o Fórum Europeu dos Reguladores de Jogo publicasse, em outubro, uma declaração assinada por quinze países que exige análise urgente do problema. Duas nações europeias, a Bélgica e a Holanda, baniram tal tipo de jogo.
Em tese, pela classificação etária, crianças não poderiam comprar as loot boxes. Entretanto, é comum que elas mintam a idade — e assim entrem na jogatina. Por causa disso, em fevereiro passado, os Estados Unidos — onde o fortíssimo lobby da indústria de videogames atua desde 2017 pela não regulamentação dos jogos — decidiram, por meio do FTC, órgão dedicado à proteção ao consumidor, abrir uma investigação sobre a prática. Em uma decisão preliminar, definiu-se que caberá às desenvolvedoras a incumbência de checar — não se sabe ao certo como — a idade dos clientes. Se uma criança mentir e não for detectada, a responsabilidade será da empresa. No Brasil, ainda não há discussão avançada em torno do tema. Contudo, como grande parte dos games é produzida na Europa e nos EUA, espera-se que as normas firmadas por lá sejam adotadas também aqui.
Publicado em VEJA de 10 de abril de 2019, edição nº 2629
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