Em reação à acelerada explosão tecnológica, o mundo ensaia um freio retrô
Sim, chegou a hora de um um recuo necessário. Há indícios nítidos desse movimento, que brota com a preocupação com a saúde mental
Houve um big bang, uma explosão primordial para o mundo no qual vivemos hoje — feito de toques rápidos em telas de smartphones e de comandos de voz para aparelhos que nos entendem, “ei, Alexa”. Foi em 2001, quando Steve Jobs (1955-2011) apresentou a primeira versão do iPod, o delicado tocador de música. Brotava ali, em Cupertino, na Califórnia, um instante de eureca. Jobs, carismático e arrogante, fez questão de iluminar uma das características do aparelhinho: a ausência de botões, a não ser a rodinha no centro da peça. O executivo, que só usava suéteres de gola alta desenhados por Issey Miyake, sofria de fobia de botões — em inglês, koumpounophobia (koumpouno é a palavra em grego para botão). Ele não queria saber de tê-los nas roupas e muito menos em máquinas. E então a civilização viveria uma nova era, acelerada depois pelo tsunami do iPhone.
Nunca como nas duas últimas décadas, desde a faísca do iPod, deu-se corrida tão intensa de modo a tornar a vida automática, supostamente mais fácil, na palma da mão, pá-pum. Sim, mas chegou a hora de um freio de arrumação, um recuo necessário, como quem para e pensa. Há indícios nítidos desse movimento. Ele brota de preocupação com a saúde mental das futuras gerações, e não por acaso a OMS sugeriu, recentemente, a proibição de celulares nas salas de aula e o veto total a menores de 3 anos. Vive-se, diante do excesso de recursos eletrônicos, o crescimento do interesse por produtos que tenham cara retrô, porém movidos a engenhos de ponta. São as máquinas fotográficas digitais com desenho antigo, como as Leica. São aparelhos de som como os da linha McIntosh, de válvulas expostas. São relógios de cabeceira que parecem velhuscos, só que não. Não se trata do fim de um tempo, mas há algo de novo no ar. “O ser humano não pode ser escravo da tecnologia”, diz Fernando Amorim, um dos criadores da High End Automação e High Fidelity, empresa de São Paulo que bebe desse momento. No avesso do universo de Jobs, a empresa desenvolveu a automação de salas, quartos e banheiros com botões — “mágicos”, como foram apelidados — como os de antigamente, nos quais se ouve o simpático “clec”, ainda que por trás corram artefatos refinados. “Notamos um bode com a automação”, diz Amorim. Há uma constatação desse enfado: 65% dos clientes que desejam montar ambientes bem iluminados e com som grandioso, fazem cara feia quando lhes é proposto um controle remoto cheio de informações.
Viva a simplicidade, que Jobs intuía, sem dúvida, mas que se perdeu pelo caminho — apesar dos evidentes benefícios de tanta inteligência extraída do silício. Convém deixar claro não se tratar de namoro com o ludismo do século XIX, o movimento de trabalhadores liderado por um certo Nelson Ludd, de revolta contra os teares no princípio da Revolução Industrial. Temia-se, com razão, mas incapacidade de imaginar o futuro, que muitos postos de trabalho sumiriam. De fato, eles desapareceram, mas criou-se uma engrenagem econômica que salvaria a economia global.
O neoludismo, chamemos assim, não pode ir na contramão do progresso. Mas não pode, também, fechar os olhos ao que passou do ponto. Vive-se, no aqui e agora, eis aí uma outra novidade, o susto com a evolução da inteligência artificial (IA). Um ruidoso estudo do Fórum Econômico Mundial mostrou que ela pode mexer com 44% dos empregos em todo o planeta. Alguns desaparecerão, muitos terão de ser adaptados. É informação que pressupõe insegurança. Um levantamento feito pela Universidade de Queensland, na Austrália, depois de ouvir cerca de 18 000 pessoas em dezessete países, indicou que apenas 42% concordam com a seguinte frase: “O mundo será um lugar melhor para viver com a IA”. É temor natural. “As pessoas tendem a mostrar medo de coisas das quais dependem, mas não têm domínio, e essa é a mais perfeita definição de tecnologia”, diz Christopher Bader, professor da Universidade Chapman, da Califórnia, autor de um robusto trabalho sobre os temores atrelados ao mundo da computação. Um conselho: ir devagar. Fazer como o dicionário Merriam-Webster, que acaba de eleger a expressão “autêntico” ou “autêntica” como a palavra do ano. Autenticidade no avesso das fake news, da acelerada corrida da IA. De volta para o futuro.
Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870