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Artigo: Na era digital, novas disputas afetam o tabuleiro internacional

Enquanto a revolução digital se consolida como fator determinante na geopolítica, países procuram reafirmar sua soberania tecnológica

Por Eduardo Felipe Matias
Atualizado em 30 jul 2020, 19h31 - Publicado em 9 jan 2020, 12h18

Quando a história do século XXI for contada, se reconhecerá que ela foi em grande parte moldada pela revolução digital. Esta, que muito já transformou a economia e a sociedade, tem efeitos significativos – e ainda pouco compreendidos – sobre a política. Uma nova Guerra Fria, de cunho tecnológico, vai tomando conta do tabuleiro internacional, enquanto se espalham pelo mundo protestos potencializados pelas redes sociais e suscetíveis, por isso mesmo, a influências externas.

Qualquer um que participe de grupos de WhatsApp sabe do poder de mobilização desse tipo de instrumento. No ano que acaba de se encerrar, foram registradas revoltas em lugares tão diversos como Chile, Líbano, Equador, Catalunha, Hong Kong, Sudão e Argélia. Todas elas levadas adiante por grupos que se auto-organizam, sem lideranças definidas, e alimentadas pelas novas ferramentas da era digital, como as redes sociais e os smartphones, repetindo o padrão verificado em ocasiões anteriores, como em 2011, na Primavera Árabe, ou em 2018, quando o Brasil parou por conta da greve de caminhoneiros e a França assistiu ao início dos protestos dos “coletes amarelos”.

Algumas características das redes sociais podem ajudar a insuflar esses movimentos. Ao que tudo indica, a revolta dos coletes amarelos, por exemplo, foi impulsionada pelo uso do Facebook, cujo algoritmo favorece conteúdos postados em grupos, em detrimento daqueles provenientes da imprensa tradicional, o que pode contribuir para a proliferação de fake news capazes de radicalizar as manifestações. Há o risco, ainda, de que esses movimentos sejam manipulados por nações estrangeiras – cogita-se que bots e trolls russos tenham incitado a violência dos coletes amarelos veiculando notícias e imagens falsas dos protestos, para desestabilizar o governo de Emmanuel Macron. Imagine-se o que ocorrerá com o aperfeiçoamento dos chamados deepfakes – áudios ou vídeos digitalmente modificados para parecerem reais, que podem colocar na boca de um político palavras que ele nunca disse?

A influência externa pode incidir, ainda, sobre os processos democráticos tradicionais, como demonstrou o relatório sobre a interferência russa na eleição americana de 2016 divulgado no ano passado pelo procurador especial encarregado das investigações, Robert Mueller. E não são apenas os governos estrangeiros que têm esse potencial. A mesma eleição foi marcada por outros dois eventos: a obtenção pela consultoria Cambridge Analytica, quatro anos antes, de dados de usuários do Facebook, utilizados pela campanha de Trump; e o papel do Wikileaks no vazamento de milhares de e-mails da candidata Hillary Clinton e de seu chefe de campanha, obtidos por hackers russos, ação que também beneficiou o então candidato presidencial republicano.

Esses dois últimos exemplos mostram que a revolução digital ampliou a capacidade dos atores privados de interferirem na vida de uma nação. Atualmente, não são apenas os pequenos estados que estão aptos a realizar ciberataques com alto poder destrutivo, como aquele que se suspeita que a Coreia do Norte tenha promovido em 2017 por meio do ransomware WannaCry, o qual, ao “sequestrar” dados e pedir resgate em criptomoedas, paralisou serviços públicos essenciais de alguns países e pôs suas populações em perigo – aliás, na recente tensão entre EUA e Irã, a possibilidade de sofrer ciberataques em retaliação é uma das maiores preocupações do governo americano. Essa faculdade se estende a grupos terroristas ou mesmo a
criminosos individuais. A expansão da Internet das Coisas somente irá agravar esse risco, permitindo que tais ataques sejam direcionados, por exemplo, a controlar automóveis autônomos em um país alvo, gerando o caos.

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Tudo isso vem comprovar que, se como tem sido repetido com tanta frequência a ponto de se tornar clichê, os dados são o novo petróleo, o domínio dos dados e das tecnologias digitais passa a ser um fator decisivo na política e na geopolítica. No âmbito privado, gigantes tecnológicas como Google, Baidu e Tencent são mais relevantes no cenário internacional do que, valendo-se da mesma analogia, qualquer empresa do setor do petróleo tenha sido no passado. Isso porque, se essas empresas amealham imensa quantidade de dados – lembrando que o número de usuários do Facebook faz dessa rede o “território” mais populoso do Planeta –, elas detêm poder.

E esse poder não se baseia apenas no acúmulo de informações, mas também na habilidade dessas empresas de prever e induzir comportamentos, dando origem a um modelo econômico que vem sendo chamado de “capitalismo de vigilância”. Já na esfera pública, alguns países iniciaram uma “corrida armamentista digital”, que envolve, entre outras iniciativas, aquelas voltadas à inteligência artificial (IA).

Nesse contexto, apesar da intensa ação política da Rússia na internet, a disputa tende a ser polarizada entre China e EUA.

A primeira anunciou o objetivo de se tornar, até 2030, líder mundial em IA – algo factível, uma vez que os dados servem de matéria prima para a IA, e a China, com seus 800 milhões de usuários de internet, os tem de sobra. Esse país é a prova de que, se por um lado a tecnologia permite a manifestantes se organizarem para derrubar regimes, por outro ela pode ser utilizada por governos autoritários para controlar seu povo, como faz a China por meio de seus sistemas de reconhecimento facial, que ela inclusive tem buscado exportar para outras nações. Esta tem procurado, ainda, expandir sua esfera de influência por meio de auxílio financeiro a países em desenvolvimento e iniciativas voltadas à infraestrutura, pelo plano denominado Um Cinturão, uma Rota, que inclui a criação de uma “Rota da Seda digital”, baseada na instalação de cabos de fibra ótica, redes de telefonia celular e centros de dados.

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Quanto aos EUA, é possível dizer que o país que inventou a internet e colhe até hoje os frutos disso não quer ser ultrapassado na revolução que ele próprio iniciou, tendo, para isso, adotado a “Iniciativa Americana em IA”, juntando-se à dezena de nações que já promovem programas semelhantes. Além disso, ciosos de sua soberania tecnológica, tentam evitar que a China, ao controlar as redes americanas de telefonia 5G, aumente sua capacidade de espionagem – sem falar na possibilidade de que, em caso de conflito, as empresas chinesas, como a Huawei, atendam a uma eventual ordem de seu governo de derrubar essas redes, comprometendo a infraestrutura de comunicação da nação rival.

A tecnologia sempre impactou tanto a política doméstica quanto a exterior, e não poderia ser diferente em tempos em que esta evolui exponencialmente. O ciberespaço muda a forma de encarar a segurança nacional, e a atenção dos Estados para com sua vulnerabilidade e influência dentro e além de suas fronteiras extrapola mais do que nunca o mundo real. Inovações disruptivas podem desequilibrar rapidamente o balanço de poder nas relações internacionais, e aumentar o peso de alguns atores não estatais. O domínio dessas tecnologias tende a se tornar o grande diferencial de poder na era digital.

Eduardo Felipe Matias é sócio de NELM Advogados, doutor em Direito Internacional pela USP, autor dos livros A Humanidade e suas Fronteiras e A Humanidade contra as Cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti.

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